Covid. “A incógnita é se vamos chegar à imunidade de grupo com enorme custo de vidas humanas ou se vai ser possível agir antes disso” O maior estudo serológico feito na Europa diz que “qualquer proposta para atingirmos imunidade de grupo através da infeção natural não será apenas muito pouco ética como também não viria a surtir efeitos”. Ao Expresso, Raquel Lucas, investigadora e docente na Faculdade de Medicina e no Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, diz que “este foi o melhor estudo já feito sobre o assunto” e sublinha que o cenário de uma hipotética imunidade de grupo significa sempre um grande custo de vidas. “Não me parece provável que na maioria dos países haja tolerância para chegarmos a esse estado. Seria incomportável para os nossos padrões”
A revista “Lancelot” divulgou os resultados daquele que é o maior maior estudo feito na Europa sobre imunidade de grupo à covid-19 (com 61 mil pessoas). Foi feito em Espanha e concluiu que apenas 5% da população do país está imune. Qual a validade deste estudo?Diria que este foi o melhor estudo já feito sobre o assunto. É muito difícil fazer um estudo de prevalência porque é tecnicamente complicado, essencialmente, e é preciso arranjar uma amostra representativa da população. O problema, normalmente, é ter uma base de dados que permita o acesso à pessoas. O que estes investigadores fizeram foi usar a base de dados do Instituto Estatístico espanhol e daí conseguiram estabelecer um espaço amostral a partir do qual extraem uma amostra que é, por definição, representativa. Claro que nem toda a gente participa, mas ainda assim estamos a falar de uma amostra de 61 mil pessoas. É muito grande, a maior até agora, e é tão representativa quanto possível da população base. Por outro lado, é um estudo que é realizado apoiado em resultados de dois testes diferentes que medem duas proteínas do vírus. Há outros dois estudos, na Suíça e Islândia, que também são de base populacional mas diria que este parece de longe o mais robusto e em que os métodos são apresentados de forma mais transparente. Até agora já havia muitos estudos mais pequenos com amostras de pessoas muito selecionadas e isso não nos dava uma visão do que acontecia na população em geral. Portanto, do ponto de vista técnico, diria que a amostra e as opções técnicas são tão válidas quanto possível e isso já é dizer muito.
E entre as conclusões deste estudos, o que destacaria?Há dois conjuntos de resultados que são importantes, que são aqueles que têm que ver com o conhecimento da doença.Com este estudo é possível perceber a progressão de assintomáticos, assim como saber quantas pessoas estão infetadas na população e calcular a letalidade de forma melhor, ou seja, a probabilidade de morrer dado que se está infetado - até agora todas as estimativas de letalidade são feitas com base no total de casos reportados, que são quase sempre os mais graves da doença, pelo que a letalidade nesta altura está sobrestimada. Do ponto de vista do conhecimento da doença isto é muito importante, pois permite perceber que a letalidade que os espanhóis estimavam (e que tinha por base os casos reportados) estava perto dos 10% e passa agora passa estar em 1%. Depois há duas outras questões públicas importantíssimas: a cobertura da vigilância e do teste deixam muito a desejar (das pessoas que tinham sintomas só cerca de 15% fizeram o teste no país) e também mostra que qualquer estimativa da imunidade de grupo que tenha sido feita está muito longe do real. Mesmo nas comunidades mais afetadas, como Madrid, por exemplo, a prevalência da imunidade não assegura a imunidade de grupo. Acresce ainda que também não sabemos se a resposta que é medida por estes testes serológicos reflete anticorpos neutralizantes que sejam eficazes num possível futuro contacto com o vírus.
De que forma é que os resultados podem ou não ser transpostos para a realidade portuguesa?Os resultados mais fáceis de traduzir para a população portuguesa são os da progressão dos assintomáticos e da taxa de letalidade. Esses dois são mais biológicos, no sentido em que temos um conjunto de pessoas doentes das quais, à partida, podemos presumir que a proporção de assintomáticos será comparável entre Espanha e Portugal - e entre outros países que tenham uma demografia semelhante. Por outro lado também conseguimos calcular de uma forma mais válida a percentagem das pessoas que morrem entre todas as que estão infetadas e também é uma transposição que conseguimos fazer de forma relativamente segura. No que diz respeito às outras questões, sobre a forma como se lidou com a epidemia, já é muito mais complicado fazer este tipo de extrapolação.Não nos parece provável que, à partida, a prevalência da infeção entre Espanha e Portugal sejam comparável. Apesar da pouca informação sobre inquéritos serológicos em Portugal, seguramente, pelo que sabemos até agora, a prevalência será muito mais baixa, mesmo que comparada com as regiões onde a prevalência é mais baixa em Espanha. Portanto, deste ponto de vista, diria que não é provável que consigamos transpor estes 5% de prevalência para a população portuguesa. Por outro lado, relativamente à cobertura do teste, também é um desafio, pois isso tem muito mais que ver com a resposta do sistema. Podemos olhar para a relação entre os mortos e os números de casos para perceber se os países estão ou não a ter uma cobertura do diagnóstico comparável. O que podemos concluir daqui mais diretamente é a progressão de assintomáticos e a relação entre a população infetada e óbitos. Todas as outras questões que têm que ver com a resposta do sistema são mais complicadas de transpor simplesmente porque a forma como se desenrolou a identificação de casos foi diferente entre os dois países.
O estudo confirma que a imunidade de grupo não é algo possível?Em primeiro lugar ainda nem sabemos se a imunidade conferida pela infeção é uma imunidade que dê proteção para futuros contactos com o agente. Por outro lado, parece claro que mesmo nas populações mais afetadas não há prevalência da infeção suficiente para possibilitar imunidade de grupo e, caso usem essa estratégia, tem um custo de vidas muito grande, incomportável para os nossos padrões. Não havendo uma forma de controlar a infeção através da prevenção (vacina, por exemplo), é possível que no limite cheguemos à imunidade de grupo por não termos outro remédio, por falta de alternativas. Neste momento a incógnita é se vamos ter de chegar à imunidade com enorme custo de vidas humanas, sofrimento e doença prolongada ou se, de facto, vai ser possível agir antes disso. Até agora não tem havido um conjunto robusto de estudos que nos permita dizer que há um país ou uma região em que a imunidade de grupo está a assegurada.
Portanto, a possibilidade de a “cura” para a covid-19 passar por uma vacina ou pela imunidade de grupo é errada?Se nunca houver uma vacina, temos sempre de admitir a possibilidade de a única hipótese de cura ser a imunidade de grupo mas, de facto, a imunidade de grupo não parece estar perto e, além disso, a forma como as sociedades têm encarado a pandemia, dando prioridade a valores fundamentais, não me parece provável que na maioria dos países haja tolerância para chegarmos a um estado em que existe imunidade de grupo. E depois também nenhum país ou região experimentou fazê-lo, portanto nem isso sabemos se funcionaria. As estimativas na imunidade de grupo na covid-19 são feitas com base noutras patologias, num conjunto de pressupostos que são planeados, que são modificáveis. O que me sobressai mais no artigo todo é que voltamos sempre à questão da identificação dos casos e da relevância dos sintomas: às vezes mascara-se um pouco a questão dos sintomáticos, porque se bate muito na tecla que existe uma grande proporção de pessoas que são assintomáticas. O artigo mostra que a prevalência da infeção nas pessoas com sintomas é sete vezes superior à prevalência da infeção nas pessoas sem sintomas. Voltar a pôr o foco na identificação e isolamento das pessoas com sintomas, sendo que isso não vai eliminar a doença da população, continua a ser absolutamente essencial.
https://expresso.pt/coronavirus/2020-07 ... tes-disso#