Cofre-forte Real
Uma caixa-forte de alta segurança protege ouro, prata, diamantes e pedras preciosas. Para a acolher e dar casa permanente ao Tesouro Real, o Palácio da Ajuda renovou-se com a construção da sua última ala. Para visitar in loco, em data a anunciar brevemente.
As obras estão na sua fase final. Falta pouco para serem dadas como terminadas ainda no primeiro semestre deste ano. A seguir, terá lugar a transposição do Tesouro Real para a sua casa permanente, e ainda a adaptação e montagem de toda a estrutura móvel ao novo espaço do Palácio Nacional da Ajuda, em Lisboa. Pelo meio, está a instalação de um sistema de segurança ao mais alto nível, dentro e fora da caixa-forte gigante que reivindica para si toda a centralidade do espaço. E assim, com todos os cuidados e pormenores, o Museu do Tesouro Real vai abrir em data a anunciar brevemente com a magnificência de outros tempos. Aqueles em que Portugal se orgulhava de ser “o senhor dos diamantes de todo o mundo”, como está escrito, há quase 300 anos, num alvará do guarda-joias da casa real que constará daquele que é já o espaço museográfico mais esplendoroso do país.
Fechando a ala poente do palácio real, o museu, totalmente contemporâneo, apresenta-se como uma estrutura em vidro atravessada por lâminas verticais. Lá de dentro vê-se o esplendor de toda a paisagem que chega ao estuário do Tejo, e, de fora, a fachada despojada quase parece um todo de pedra. Imponente, sim, com uma escala monumental também, o edifício projetado pelo arquiteto João Carlos Santos, também subdiretor-geral da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), guarda a sumptuosidade necessária para acolher o nosso maior tesouro, escondido do público quase desde sempre.
A pompa e circunstância estão garantidas a cada visitante, quer entre pela Calçada da Ajuda, quer aí se desloque pela ala contrária, atravessando o pátio. Nós subimos a Calçada para admirar a fachada e a sua escadaria lateral, mas entrámos pelo pátio direitos à praça das arcadas que serve de espaço de reunião do público antes de se dirigir às bilheteiras, já no interior do edifício. A monumentalidade é a grande surpresa. A escala, a dimensão. Mais de 30 metros de altura, o equivalente a um prédio de dez andares. Vidros de seis metros de altura com 600 a 700 quilos de peso, e uma largura de 80 centímetros. “É tudo às toneladas, às centenas de metros”, desabafa o arquiteto, que começou a trabalhar na finalização daquela ala inacabada do Palácio da Ajuda em 2006, estava Isabel Pires de Lima à frente da pasta da Cultura. De lá para cá, foram muitos os projetos que apresentou, transformou e melhorou para aquele mesmo espaço. “Cada ministro que entrava, pedia uma coisa diferente”, diz o arquiteto. Este desenho em particular, já tomando em conta que seria o do edifício que albergaria o Tesouro Real, tornou-se o que agora se executa há uma década, era Gabriela Canavilhas ministra da Cultura. Entretanto, entre avanços e recuos, a obra só foi apresentada em 2016, já era ministro da Cultura João Soares, e só arrancou mesmo em janeiro de 2019, já ocupava a pasta da Cultura a atual ministra, Graça Fonseca.
“O que é que fui fazer? Fui ver os projetos desenhados anteriormente pelos meus colegas arquitetos, de Raul Lino a Gonçalo Byrne, passando por João Seabra. E decidi não mexer na Calçada da Ajuda, como eles tinham pensado, nem fazer a conclusão do projeto reduzido do antigo palácio. O meu limite fica dez metros atrás da versão reduzida, para não ter que mexer na Calçada, que considero por si só um elemento histórico. A intervenção é diferente e assumidamente diferente, com uma expressão contemporânea”, explica João Carlos Santos. “Privilegiei a visualização para o exterior. Quando se faz fachadas em vidro tem que se arranjar para-sóis que ou são lâminas verticais ou horizontais, escolhi as primeiras. Além disso, o vidro com esta solução de lâminas verticais acaba por desaparecer, só se vê quando estou mesmo de frente. Lateralmente parece quase uma superfície toda em pedra. É o que pretendia.”
E se o objetivo era construir um edifício de raiz por forma a expor um espólio que estava guardado a sete chaves e que ninguém conhecia, ele foi bem sucedido. Património nacional, o Tesouro Real só foi mostrado numa exposição temporária em 1991, era Pedro Santana Lopes secretário de Estado da Cultura, e, antes disso, no período que vai de 1968 a 1974, algumas peças estiveram expostas no Palácio da Ajuda. Agora, o Tesouro Real vai ficar à vista de toda a gente, mas continuará fechado, desta vez, a mais de sete chaves.Preocupação máxima do projeto, a segurança quase manda no edifício e não se concentra só na caixa-forte que alberga a totalidade do Tesouro. O arquiteto vai ao cerne da questão: “Temos um consultor de segurança internacional. De resto, não avancei com o projeto sem ter esse conforto. Na nossa primeira reunião ele foi logo claro, independentemente de todos os níveis de segurança que possamos ter implantado, não estamos livres de ter um roubo, porque isso acontece. Devemos é procurar dificultar ao máximo que ele se concretize.”
A segurança, continua João Carlos Santos, começa com o desenho do projeto. “Pensei em fazer uma grande caixa-forte, que tem 40 metros de comprimento, por dez de altura e dez de largura. Está localizada a meio do edifício novo, e é lá que fica toda a exposição do tesouro, que vai ser visitada, à semelhança do que acontece noutros locais do mundo, na Europa, sobretudo. Essa caixa-forte está aberta ao público durante o dia e é fechada ao fim do dia. Cada porta — são duas — pesa cinco toneladas, e tem 40 cm de espessura, feita toda em aço. São portas de segurança máxima, portas de cofre.”
De facto, também elas impressionam, e muito. Ao passá-las parece que vamos entrar para um local desconhecido, cujas coordenadas só descobrimos mais tarde. É lá dentro que olhamos para o espaço do museu. Inacreditável. Deparamo-nos com a existência de três pisos, três níveis expositivos circundados por uma rampa para pessoas com mobilidade reduzida, que acaba por ser usada por todos os visitantes num percurso único. Na cabeça ainda vai a espuma dourada de alumínio retroiluminado que forra a parte de fora do cofre gigante tornando-o reluzente o suficiente para ser notado até do exterior do palácio. Longe ficaram, entretanto, os detetores de metais, os raios X e os infravermelhos logo a seguir às bilheteiras. “Tradicionalmente, temos uma ideia da segurança que se baseia na colocação de câmaras e de raios X, mas é muitíssimo mais do que isso o que temos aqui. O projeto está pensado desde a raiz para incorporar todos os tipos de segurança. Ela está no design do edifício e também nos dispositivos aí montados, uns visíveis, outros não, alguns são como nos filmes, outros não são. A verdade é que nos permitem ter aqui um nível de segurança enorme e indispensável”, explica o subdiretor-geral da DGPC. A estratégia de segurança, avança ainda João Carlos Santos, “passa, na maior parte das vezes, por dificultar o acesso, quanto mais barreiras criarmos para se atingir o objeto, melhor. Ou seja, temos que conceber uma série de obstáculos, que se traduzem em vários perímetros, como se diz na linguagem de segurança. Aqui, temos o perímetro do edifício, depois o perímetro do interior do edifício, o perímetro da caixa-forte, e ainda o perímetro da vitrina”.
“As joias não têm preço. Não há nada que as pague”, e, depois do roubo de Haia, a 2 de dezembro de 2002, todos os cuidados são poucos e todos são legítimos. Desapareceram seis das melhores peças do Tesouro entre as 15 que tinham sido emprestadas para a exposição “Diamante: Da Pedra Bruta à Joia”. Os ladrões levaram o mais extraordinário diamante português, uma pedra de 135 quilates, pertença de D. João VI e considerada uma das maiores do mundo, um anel do mesmo monarca, em prata e ouro, com um imponente diamante de 37 quilates, um castão de bengala de D. José em ouro, encimado por 387 brilhantes, um par de alfinetes trabalhados em ouro e platina e cravejados com diamantes-rosa e brilhantes, e uma gargantilha oferecida por D. João VI à Rainha Carlota Joaquina, toda em ouro e prata, decorada com 32 brilhantes. Da indemnização do roubo em território dos Países Baixos, 4,4 milhões de euros foram adjudicados à obra que ultrapassa agora os 30 milhões de euros.Não é para menos. Se a descrição das peças roubadas há 18 anos impressiona, imagine-se o que não serão quase 900 peças, 142 joias, 14.800 pedras, das quais 12 mil são diamantes, cravejadas em muito ouro e muita prata, onde sobressaltam ainda as esmeraldas, as safiras e os rubis.
É verdade. São objetos de um valor histórico e artístico incalculável. Para termos uma ordem de grandeza, vejamos o caso de um pingente de Maria Antonieta, vendido num leilão da Sotheby’s em Genebra, em 2018, por 36 milhões de euros. O valor estimado pela leiloeira era entre dois a três milhões, mas a pertença a uma figura histórica elevou-o muitíssimo. O Tesouro Real que ainda temos foi utilizado pela corte entre o século XVIII e o fim da monarquia, em 1910. Há peças anteriores, de finais do século XVI, como as 23 salvas de prata de aparato, que serviam as cerimónias reais. E há muitas peças de ourivesaria, que também mostram o esplendor de um reino no auge do seu período imperial. E há mais, muito mais.
O primeiro núcleo do percurso chama-se Essência. Lá vão estar as matérias-primas com que se constroem as peças do Tesouro Real que serão vistas a seguir. A famosa pepita de ouro de 21 quilos, a maior do mundo ao que se conhece, encaixa nessa secção ao lado dos diamantes. Uma réplica dela vai estar à disposição dos visitantes para que toquem e sintam o material original. A ideia é completar a experiência do público com mais do que o olhar. À semelhança da pepita, outras réplicas de outros objetos estarão espalhadas pelo recinto expositivo com a mesma intenção. Há uma secção dedicada a moedas e medalhas, muitas delas constituíram trocas diplomáticas, outras não, que foram sendo identificadas com a ajuda dos especialistas do Museu do Dinheiro. Espaço também para as Ordens Honoríficas, onde se destaca a Ordem do Tosão de Ouro, com os seus rubis de “características compatíveis com a origem birmanesa, de uma região particular que se chama Mogok, com a sua safira comprada no tempo de José Rosas Júnior [o restaurador das peças na década de 50 do século passado], comprada pelo Estado Novo, portanto, com características compatíveis com origem no Sri Lanka, tratando-se daquilo a que antigamente se chamava a safira do Ceilão”, explica Rui Galopim de Carvalho, encarregado de fazer o estudo de gemologia mais completo até agora das pedras preciosas incluídas no Tesouro Real.
Noutro núcleo estão as joias propriamente ditas, e uma secção dedicada à aclamação dos reis. “São momentos muito imponentes e muito marcantes pelos objetos que lá estão, os mantos, os cetros, a coroa feita no Brasil, toda a iconografia régia, as saramelas dos brados da aclamação...”, conta José Alberto Ribeiro, diretor do Palácio Nacional da Ajuda e também do Museu do Tesouro Real. É ele quem nos relata também a existência do núcleo dedicado às tais 23 salvas de aparato, algumas do século XVI, com os motivos africanos, e que vêm do reinado de D. Manuel, uma coleção única e de nível internacional. Novidade, será a exposição das “coleções particulares de dois reis que deixaram um acervo muito significativo de ourivesaria entre o século XVI e o século XIX, a de D. Fernando II, mais conhecido neste domínio, e de D. Luís I, que não era um colecionador da mesma envergadura do pai, mas, graças a quem, foi criada a Galeria de Pintura do Rei D. Luís, no Palácio da Ajuda. À coleção de pinturas junta-se a coleção de moedas antigas que tinha e também muitas peças de ourivesaria que comprou em viagem”.
Há também um núcleo dedicado às ofertas diplomáticas, onde ficam as ofertas de cidadania, das cidades que os monarcas visitaram, os presentes de presidentes de visita ao nosso país, do Papa, que deu as célebres rosas de ouro em oferta às rainhas de Portugal. E ainda um núcleo dedicado só a objetos litúrgicos que faziam parte da Casa Real, coroas, paramentos, panos de altar, e de banquetas de altar. E, já no último andar, no núcleo dedicado à mesa real, dá-se a conhecer a baixela Germain, uma encomenda feita por D. José, que ainda hoje é usada para cerimónias muito especiais, e que agora foi estudada cuidadosamente pelo conservador de Artes Decorativas do Museu do Louvre. Por último, continua o diretor do palácio, espaço para uma explicação para que o público perceba como muitas destas peças que fizeram parte do Tesouro Real viajaram. Está lá a caixa da enorme coroa, caixas várias que serviam para transportar outras peças. Estes invólucros não guardaram só o que foi para o Brasil e de lá voltou, serviram também para preservar as joias que durante a guerra civil, entre D. Miguel e D. Pedro, andaram pelo país a acompanhar o monarca e apresentam-se aqui como novidade absoluta.
Completamente novo vai também ser o aspeto das peças. Limpas como nunca pelo Laboratório José de Figueiredo (LJF), apresentam-se mais cintilantes, com mais brilho e cor mais viva. “Quase parecem joias diferentes”, diz José Alberto Ribeiro. Belmira Maduro, responsável do LJF pela intervenção de conservação e restauro das peças, confirma: “A mudança da cor e do brilho da superfície das peças antes e depois de tratamento é notória, pois a prata e o ouro da prata dourada recuperaram o brilho original.” E Rui Galopim de Carvalho garante que “são joias de qualidade máxima”.
A limpeza iniciou-se em janeiro de 2017 com a observação do estado de conservação de um conjunto de peças civis e religiosas, datadas entre o século XVI e o século XIX. Mas só em outubro de 2019 teve início a intervenção de conservação. No Palácio Nacional da Ajuda montou-se um espaço adequado à execução do plano de intervenção, e aí começou a conservação das várias tipologias de peças de prata e prata dourada (castiçais, cruzes, cálices, turíbulos, navetas, salvas, gomis, etc.). Antes e durante o restauro, para cada peça foi feito um relatório com o seu estado de conservação, ao qual se foi juntando toda a informação recolhida durante a intervenção, assim como a metodologia usada. Todo o processo tem sido também acompanhado por uma recolha de documentação fotográfica.
“Tanto as peças de prata, prata dourada ou aquelas que são parcialmente douradas tinham a superfície muito escurecida, deformações, e, em algumas, era notório os sinais de intervenções antigas a que foram sujeitas ao longo dos tempos”, explica Belmira Maduro. “Nunca nos podemos esquecer que todas estas peças foram usadas.” A técnica do LJF esclarece que “sempre que foi possível, as peças formadas por vários elementos foram desmontadas, possibilitando um tratamento mais cuidado e também a recolha de um conjunto de informação que se prende com as alterações que as peças possam ter sofrido, como marcas de ourives e de execução, assim como diferentes técnicas e métodos de douramento empregues. Foi ainda possível observar e documentar as alterações que as peças sofreram em termos de gosto, com a junção de novos elementos ou com a mudança de proprietários, bem como com a alteração ou adição de brasões. Algumas deformações foram corrigidas. E todas as intervenções tiveram por finalidade dar uma leitura uniforme e estabilidade física às peças”, conta. E conclui: “Apesar de não se poder considerar que as joias estivessem em mau estado de conservação, é muito grande a diferença que vamos encontrar após a intervenção. A cor e o brilho das pedras é muito mais intenso, assim como a prata para as cravações de diamantes e o ouro para as gemas coloridas. As joias ficaram esplendorosas”.
Este processo decorreu em paralelo com a observação das gemas por Rui Galopim de Carvalho. Quatro meses de trabalho iniciado em setembro permitiu ao gemólogo analisar pedra por pedra. “Comecei por fazer a identificação gemológica das pedras, identificar o material, se é diamante, se é rubi, esmeralda ou safira, depois medi a pedra no seu comprimento, na sua largura, diâmetro médio, e, no caso da pedra ser de cravação aberta, medi a altura entre a parte de cima e a parte debaixo. O objetivo era medir as três dimensões da pedra com o intuito de, com alguns cálculos aritméticos, fazermos uma estimativa grosseira de qual será o seu peso em quilates (0,2 gramas). E só fizemos este cálculo para as peças acima dos 7 milímetros, ou seja, já com alguma dimensão.”
Seguiu-se a descrição da pedra, cor, pureza e limpidez, o que se vê à vista desarmada ou com ampliação de dez vezes, e o que a pedra tem lá dentro. “São também descritas as características internas da peça, que basicamente são os defeitos. Se tem riscos, se foi danificada, se está partida...”, explicita Rui Galopim de Carvalho. Essas características internas, juntamente com outros dados, vão permitir “aventar a hipótese de uma possível origem geográfica da pedra, para sustentar, ou não, aquilo que são as proveniências das pedras preciosas à altura da manufatura”. Um trabalho de detetive para ver se há concordância entre a informação que a pedra tem e as ocorrências normais e coevas da altura da manufatura. Falamos de 200 anos ou mais. São estas descrições, juntamente com as descrições das lapidações feitas nas pedras, que acabam por validar ou não o historial das peças.
As pedras mais importantes da coleção são os diamantes, basta dizer que entre 80 a 90% delas são diamantes. “Nessa altura o diamante só vinha de três locais do mundo. Do Brasil, de que nós éramos a potência dominante, tendo uma posição privilegiada para os poder ter; vinham da Indonésia, dominada pelos holandeses; e vinham da Índia, na altura dominada pelos britânicos, com produções muito mais modestas do que as brasileiras. Essa nossa relação com o Brasil faz supor que os diamantes das joias da coroa sejam muito provavelmente de origem brasileira”, explica o gemólogo, que não retira importâncias às outras pedras preciosas como a esmeralda, a safira ou o rubi. “A grande laça de esmeraldas é uma peça absolutamente extraordinária, é enorme, as esmeraldas têm uma grande dimensão, entre os quatro e os 17 quilates, e a do meio entre 40 a 50 quilates. Estamos a falar de 250 a 280 quilates de esmeraldas e, quando olhamos para a peça, todas as esmeraldas têm a mesma cor e essa excelência da cor, de elevada transparência, é de uma enorme categoria. Notável num conjunto de 31 esmeraldas extraordinárias. E, em meados do século XVIII, esmeraldas com aquele calibre só vinham da Colômbia.”
A história que explica como é que essas pedras são pertença da coroa portuguesa, que não detinha a Colômbia, conta-a José Alberto Ribeiro: “A filha de D. João V, D. Maria Bárbara de Bragança, casou com Fernando VI de Espanha e teve essa joia enquanto rainha de Espanha, e princesa de Portugal, porém, como morreu sem descendentes, deixou-a a uma das suas irmãs. E a peça entra no tesouro real por essa via.” Histórias como esta há muitas. “Cada peça exposta será contextualizada o mais possível, indicando-se quem a usou, onde e quando”, avança ainda o diretor do Palácio da Ajuda.
A peça mais importante da coleção do Tesouro Real, diz Rui Galopim de Carvalho, é a Insígnia da Ordem do Tosão de Ouro. E é-o “do ponto de vista da construção, das pedras e da forma como estas estão cravadas”. “Há um passador muito bonito que tem duas pedras vermelhas, uma grande e uma pequena. A pequena é um rubi de aproximadamente cinco quilates, provavelmente de origem birmanesa, e a grande, com um encarnado rosado é aquilo a que os antigos chamavam rubis balas, vindos do Cazaquistão, dos quais os navegadores do século XVI já falavam e que chegavam das rotas da Índia. Há um alfinete com diamantes e uma pérola que pertenceu à rainha D. Maria Pia. A pérola também tem uma categoria extraordinária. É uma pedra grande, barroca, porque irregular, sem eixo de simetria, que também é digna de nota. Destaco ainda aquele grande sabre que pertenceu a D. Miguel, o sabre de corte, lindíssimo, com o punho em ouro cravejado de diamantes. Temos um abre-cartas feito em jade russo, fabricado pela casa Fabergé, os joalheiros dos Romanov”. Temos peças realizadas por Pollet e peças criadas pelos romanos Castellani no século XIX. Em duas palavras, diz ainda o gemólogo, trata-se de “uma coleção extraordinária e de qualidade mundial”.
A essa riqueza de pedras e metais agora documentada (quantos serão os muitos milhões de euros ali reunidos?), junta-se todo um leque de informação adicional, que permite uma outra leitura sobre o objeto. “Há também uma cronologia no tempo que conta a história deste tesouro, como se formou e como chegou aos nossos dias, entre guerras, revoluções e roubos. A ideia é mostrar esse acervo gigante”, adianta José Alberto Ribeiro. “Um tesouro único do ponto de vista simbólico, e artístico ao nível da ourivesaria de ouro, prata e pedras preciosas”, diz e explica: “Pela matéria, pelo requinte e pela mestria, muitas destas peças de ourivesaria são fascinantes, sobretudo para o público português, que não tem ideia, porque nunca viu, da dimensão e da qualidade que elas têm. É um momento único e histórico.”
No percurso expositivo, o grande enfoque está no período após o terramoto de 1755, que é devastador. “Quando arde o paço de madeira, a Real Barraca, construída logo a seguir à catástrofe, para servir de casa à realeza portuguesa, são mandadas fazer escavações nos escombros para procurar o que se tinha salvo. O incêndio aconteceu em início de novembro de 1794, e em março do ano seguinte há vários relatos da descoberta de pedras preciosas, diamantes e prata que se fundiu. Tudo isto são o tipo de informações adicionais sobre os vários momentos pelos quais este tesouro vai passando ao longo da história.” Além do terramoto, as invasões francesas, período em que as peças vão para o Brasil, lá se dispersam e só algumas regressam, a guerra civil entre D. Miguel e D. Pedro, quando muita coisa foi vendida para financiar o confronto, e o momento triste do roubo de Haia, também estão assinalados. Este é o momento da reunião do Tesouro e da história desses objetos de grande aparato ligados ao líder do país durante séculos. E um momento novo do ponto de vista da historiografia da arte portuguesa.
Abandonámos o Palácio Nacional da Ajuda com um torpor no corpo e uma excitação na cabeça. Fomos os primeiros a visitar aquele que vai ser o ex-líbris de um reino não tão longínquo assim e que marcou a história da representação de Portugal aos olhos do mundo. Percorremos a sua memória e imaginámos o seu futuro.https://leitor.expresso.pt/semanario/se ... forte-real