Suécia. “Um exemplo a não seguir” e a insistência na responsabilidade individual: imunidade de grupo ainda é uma miragem
Um endocrinologista sueco diz que se está “a sacrificar os idosos e os doentes”, pelo que a estratégia “não é algo que alguém deva copiar”. A ministra da Saúde já reconheceu que as autoridades “falharam na proteção dos idosos”, mas quer que os profissionais essenciais regressem ao trabalho mais rapidamente. O plano é descrito como “muito irresponsável”, mas também há quem fale nos “muitos equívocos” de quem olha para a abordagem sueca à covid-19
A estratégia sueca de combate ao coronavírus não passou, ao contrário da generalidade dos outros países, pela aplicação de medidas de confinamento. Desde o início da pandemia, as pessoas estão autorizadas a deslocar-se aos seus postos de trabalho, a comer em restaurantes e a frequentar espaços públicos. A maioria das escolas, restaurantes e bares mantém-se aberta e o distanciamento social é encorajado mas não imposto. A estratégia concentrou-se ainda no isolamento de grupos de risco e no apelo à responsabilidade individual dos cidadãos. As consequências desta gestão mais relaxada da crise pandémica começam a ser conhecidas: a Suécia é atualmente o oitavo país com mais mortes por milhão de habitantes e na última semana foi mesmo o que registou mais vítimas mortais per capita associadas à covid-19.
A abordagem menos restritiva terá razões culturais e só terá sido possível dada a robustez do sistema nacional de saúde, mas não é acompanhada por todos os suecos nem é consensual entre a comunidade científica do país. No mês passado, mais de dois mil especialistas assinaram duas cartas abertas apelando à adoção de medidas mais duras e com instruções de cumprimento obrigatório por parte dos cidadãos. Aqueles especialistas advertiram os restantes países a não seguirem o exemplo sueco, que, garantiram, ignora muita da melhor investigação que tem sido feita relativamente ao novo coronavírus.
O endocrinologista Olle Kämpe, consultor destacado do Karolinska Institutet de Estocolmo, disse ao site Business Insider que o país está “a sacrificar os idosos e os doentes”, pelo que a estratégia “não é algo que alguém deva copiar”. O Governo começou por garantir que a sua abordagem não está assente na aquisição de “imunidade de grupo”. Também conhecida como “imunidade de rebanho”, trata-se de uma forma de proteção indireta contra doenças infecciosas que ocorre quando uma grande percentagem da população se torna imune à infeção, através da vacinação ou de infeções anteriores, conferindo proteção a indivíduos que não estão imunes.
No entanto, o epidemiologista-chefe sueco e o principal arquiteto do plano do país, Anders Tegnell, tem sublinhado o progresso feito no sentido da tal imunidade coletiva. Segundo o responsável, 20% da população de Estocolmo estava imune no final do mês passado, o que poderia servir de salvaguarda contra uma eventual segunda vaga. Mas a Autoridade de Saúde Pública revelou esta quinta-feira que apenas 7,3% dos habitantes da capital sueca tinham desenvolvido, até ao final de abril, os anticorpos necessários para combater a doença. Não só esta percentagem é semelhante a outros países, como está bastante abaixo do intervalo de 70%-90% necessário para se atingir a “imunidade de grupo”, sublinhou a CNN.
Tegnell, que acusou os subscritores das cartas abertas de citarem dados “imprecisos”, reconheceu que a percentagem revelada esta semana se situa “um pouco abaixo” do esperado. “Mas não extraordinariamente abaixo, talvez um ou dois pontos percentuais”, acrescentou, garantindo, apesar de tudo, que bate certo com os modelos de que dispõe. O valor foi aferido com base em 1.118 testes realizados numa semana. A Autoridade de Saúde Pública irá conduzir o mesmo número de testes semanalmente durante um período de dois meses, sendo que os resultados de outras regiões serão revelados mais tarde, adiantou um porta-voz da instituição.
Já na terça-feira, a ministra da Saúde, Lena Hallengren, tinha anunciado que os testes seriam alargados a todas as pessoas com sintomas moderados e que haveria mais testes disponíveis para os trabalhadores considerados essenciais. “Não podemos ter uma situação em que as pessoas ficam em casa ao mais pequeno sintoma se não têm necessidade de ficar”, disse a ministra, citada pela agência de notícias France-Presse. Até meados de abril, as autoridades só faziam testes aos doentes hospitalizados e aos profissionais de saúde. Desde então, têm vindo a alargá-los aos profissionais considerados essenciais para que estes possam regressar ao trabalho mais rapidamente.
“Estão a deixar os idosos sufocar e dão-lhes morfina em vez de oxigénio”
A autora sueca Katerina Janouch, que concorreu, sem sucesso, por uma coligação de cidadãos às eleições legislativas de 2018, avalia a gestão da crise como “muito irresponsável”. As autoridades “não protegeram os idosos nem os profissionais de saúde e não aplicaram a quarentena a pessoas que vinham do exterior”, refere, em declarações ao Expresso. Além isso, fala na escassez de testes e de máscaras, em “autocarros sobrelotados”, na “insuficiência de medicamentos” e em “mentiras das autoridades”. “Estão a deixar os idosos sufocar e dão-lhes morfina em vez de oxigénio”, critica.
As autoridades de saúde garantem que o seu plano se destina a proteger os mais vulneráveis, pelo que quem tiver mais de 70 anos é aconselhado a ficar em casa e as visitas aos lares de idosos foram proibidas. Contudo, cerca de metade das mortes associadas à covid-19 ocorreu nos lares, enquanto quase 90% das vítimas mortais são pessoas com idade superior a 70 anos, o que está em linha com o que acontece com outros países europeus como França e o Reino Unido. A Suécia está a tentar “atingir a imunidade de grupo matando pessoas”, insiste o endocrinologista Olle Kämpe. “Está a dizer que as pessoas mais velhas ou com doenças como obesidade ou diabetes valem menos do que o resto de nós. Por isso, podemos simplesmente deixá-los morrer e atingir a imunidade de grupo”, critica.
O epidemiologista-chefe rejeita que o plano que traçou passe por sacrificar determinados grupos da população, descrevendo o elevado número de mortes como um acontecimento imprevisto. Mas a ministra da Saúde já veio reconhecer publicamente que as autoridades “falharam na proteção dos idosos”. Funcionários de lares têm-se queixado da falta de acesso a equipamento de proteção individual e alguns dizem não ter autorização para tratar os pacientes com oxigénio, tendo ainda sido instruídos a não os levarem para os hospitais.
Em meados de março, Katerina Janouch mudou-se de Estocolmo para o campo. “A minha vida mudou muito porque não consigo visitar os meus pais idosos e também limitei os meus contactos sociais ao mínimo. Independentemente do que dizem as autoridades, tomei as minhas precauções e trabalho a partir de casa e não em cafés, como costumava fazer”, conta. Devido à “recessão económica”, diz que perdeu “alguns dos seus trabalhos” e que já se sentem os impactos da crise: “muitas falências e uma taxa de desemprego nos 8%, com tendência a subir”.
“O Governo pede à população que use o bom senso. Isto dá muita flexibilidade”
O programador informático Eskil Steenberg faz ao Expresso uma avaliação diferente: “Penso que há muitos equívocos sobre a abordagem da Suécia. Levamos a covid-19 muito a sério mas, em vez de forçar a aplicação de uma lei, o Governo pede à população que use o bom senso. Isto dá muita flexibilidade.” “Enquanto leigo, esta abordagem faz sentido para mim, mas ninguém sabe se é a abordagem certa. É preciso deixar as pessoas pensarem por si a certa altura. Por outro lado, se se dá muita responsabilidade às pessoas, algumas não vão agir responsavelmente”, concede. Steenberg mostra-se, ainda assim, preocupado com “a incapacidade dos líderes políticos de pressionar a indústria a produzir testes e equipamento de proteção”. “Mas este não é um problema apenas na Suécia, antes uma cultura de inação política em todo o mundo ocidental”, relativiza.
“Não sei se fui infetada porque não há testes, mas estive muito doente em março e a minha filha também”, conta Katerina Janouch. A escritora assegura que “todos conhecem alguém” que foi infetado ou morreu vítima de covid-19, entre “amigos próximos e mais afastados”. “Uma amiga da minha filha e a família estiveram doentes. A mãe esteve nos cuidados intensivos, mas já recuperou. Familiares de amigos morreram. Um amigo meu, a celebridade televisiva Adam Alsing, morreu com a doença aos 51 anos. Foi um choque terrível”, relata. Já o programador informático confessa que, em termos económicos, está “melhor do que nunca”. “A maioria dos meus amigos está bem, mas obviamente houve muitas perdas de empregos. Comparativamente, penso que estamos a sair-nos bem”, conclui.
O número de mortos na Suécia (3.925, segundo a Universidade Johns Hopkins) está bastante acima do registado nas vizinhas Noruega (235), Finlândia (306) e Dinamarca (561). E isso já começa a provocar problemas de vizinhança. O epidemiologista-chefe finlandês, Mika Salminen, considerou um risco o seu país receber turistas suecos, avançou esta quarta-feira a SVT Nyheter. O responsável descreveu a situação como “lamentável”, acrescentando: “É uma decisão política, mas a diferença atual [entre os dois países] na propagação da infeção é um facto. E suponho que o Governo certamente terá isso em consideração.”
As vítimas mortais por milhão de habitantes na Suécia são cerca de quatro vezes mais do que na Dinamarca e oito vezes mais do que na Noruega. Os três países têm densidades populacionais e sistemas de saúde e políticos semelhantes.
https://expresso.pt/coronavirus/2020-05 ... a-miragem#