Realidades sobre a vida em Caracas no que toca a comidas:
A população em geral para ter acesso a alguns alimentos básicos contidos nas caixas “Clap” tem de desembolsar cerca de 1/5 do salário mínimo para obter em troca de cerca de uma dúzia de produtos que dão no máximo para 3 pessoas e se esgotam em 15 dias.
Os produtos das caixas variam de semana para semana mas em geral contêm: 1 quilo de açúcar, 1 quilo de farinha de milho para fazerem arepas e cachapas, 1 quilo de carne de frango, 4 litros de leite, massa de esparguete, 1 l óleo, um frasco de maionese, manteiga, 1 quilo arroz (nem sempre) e mais alguns produtos diferenciados (ex: umas verduras e meia dúzia de ovos locais, já que o resto que de vez em quando aparece é importado: pasta de dentes, papel higiénico, shampoo, etc).
Estas caixas são importadas do México, um país capitalista
, porque atualmente na Venezuela não se produz quase nenhum destes produtos quando antigamente na era “prechavista” a Venezuela exportava disto tudo para países vizinhos.
As caixas custam no México perto de 14 dólares cada e são vendidas a preços subsidiados na Venezuela, com gestão feita pelas altas patentes militares, a perto de 10.000 Bolívares cada (nota: o salário mínimo atual são cerca de 98.000 Bolívares) e só podem ser vendidas no máximo de 2 caixas por mês para cada agregado familiar.
Com produtos tão básicos e com imensa falta de proteínas, sem praticamente carne e peixe incluídos cuja produção vai toda para os restaurantes inacessíveis à maioria da população, não é de admirar que os venezuelanos em geral estejam à beira de uma desnutrição terrível e tenham emagrecido num ano uma média de 6 quilos por pessoa adulta. Para o regime isso é sinal de saúde revolucionária (!) uma vez que a maioria da população era considerada obesa (o que até é verdade, há que reconhecer, em especial nos Estados do oeste de Zulia / Maracaibo e Táchira / San Cristóbal próximas da fronteira colombiana).
Para controlar o fator das vendas mensais das caixas e evitar o açambarcamento o regime criou o chamado “carnet de la patria”, um cartão individual de adesão voluntária que tem um chip interno que no fundo controla cada cidadão mesmo que não tenha sido criado para esse fim (ou terá sido, cada um que tire as suas conclusões!?), incluindo se foi votar ou não para a nova Assembleia Nacional Constituinte. Se um indivíduo for funcionário público e não foi votar para estas eleições pode-se considerar despedido, simples e prático assim vão eliminando os que na administração pública não são simpatizantes do PSUV. E quem não foi votar, mesmo sem ser funcionário público, ameaçam agora cortar as caixas “clap” durante várias semanas, acabando por ser um meio de fidelização muito eficaz, simpatizante do regime em troca de comida para sobreviver!
Muitos venezuelanos que não têm poder de compra, para ganhar mais uns cobres, vendem estas caixas no mercado negro, que conseguiram a mais para além das suas necessidades, por 30.000 ou mesmo 50.000 Bolívares, uma forma indireta de fazer negócio que põe filhos e sobrinhos nas bichas com outros carnets de la patria a constituirem um único agregado familiar para com isso açambarcarem mais caixas. Um negociata da china que beneficia todos os que estão nesta cadeia incluindo aquelas que se vendem por fora na logística militar! Por alguma razão os militares apoiam Maduro...
Cerca de 2/3 dos venezuelanos tiveram de aderir ao carnet de la patria por razões óbvias de sobrevivência, embora para o regime de Maduro seja uma adesão voluntária das pessoas ao oficialismo, cada mês que passa a televisão pública vai dando conta que cerca de 19 milhões de venezuelanos em 31 milhões de população total aderiu ao socialismo do século 21! Mesmo assim muitos venezuelanos endinheirados não aderem a este sistema, seja porque são acérrimos adversários do regime mas também porque não estão para se sujeitar a perder tempo em quilómetros de filas em zonas da cidade consideradas pouco seguras nestas lojas do povo dos bairros das “misiones alimentos”, nos chamados “Mercal” e “Pdval” onde se vende a maioria destas caixitas.
Os estrangeiros e expatriados que vivem ou viveram na Venezuela não podem aderir ao carnet de la patria, têm de comprar nos supermercados, o que houver, aos preços do paralelo ou então compram no mercado negro a várias vezes o preço máximo “regulado” dos tais produtos básicos.
Em geral eu tinha de pedir à minha secretária que me arranjasse semanalmente uma lista de produtos que no mercado negro em média me ficavam a cerca de 3 vezes o tal preço máximo “regulado”.
A água engarrafada já não existe há muitos anos nos mercados, para isso eu levava uns 2 ou 3 garrafões “botellones” que enchia com a água industrial de garrafões empresariais de 15 litros que existia no escritório onde trabalhava.
Nos restaurantes só a classe alta e estrangeiros que podem aceder a Dólares e Euros têm acesso, uma refeição normal custa cerca de 150.000 a 200.000 Bolívares, come-se bem e de tudo mas a cerca de 2 vezes o salário mínimo venezuelano!
Para poupar alguma coisa, uma vez que comer fora em restaurantes por conta própria fica muito caro, mesmo para quem vive bem, a regra geral no meu caso era almoçar em casa quando pudesse e à noite fazer uma dieta saudável à base de uns copos de leite, umas saladitas, uns espargos chilenos, uma fruta e de vez em quando umas lonchas de atum em conserva com ovo cozido e umas batatas ou yuca (mandioca) cozidos. Também de vez em quando uma ou outra cachapa pré cozida com doce de fruta e um bocado de chocolate venezuelano para compensar a falta de açúcar. Na verdade habituei-me e ainda hoje mantenho o hábito, devido à sua inexistência, de tomar cafés sem açúcar na Venezuela e deixei de vez de comer doces às sobremesas, nestes casos só fruta à base de bananas e mangas.
Para almoçar comia essencialmente pratos à base de carne ou, algumas vezes, lagosta que ali é muito barata. Mais importante: aprendi a cozinhar! Não sabia nada de cozinha e agora estou quase um “chef”, desde bons pratos de camarões de moçambique com molhos exóticos a pratos sofisticados de massas apimentadas de “strogonoff” acho que dou cartas no setor!
Nunca comi carne tão boa na minha vida como em Caracas, parece impossível dizer isto no meio da crise alimentar existente no país mas é verdade, para isso tinha de pagar aos preços do paralelo, semelhantes aos que se praticam em Portugal na respetiva conversão. Mas posso-vos dizer: carne magnífica para os verdadeiros apreciadores, mesmo top!
Para comprar carne ia quase sempre a um local que era ao mesmo tempo restaurante, esplanada, pastelaria, supermercado e talho, o “El Rey David”. Pertence a um português. Há lá de tudo mas a preços muito caros, totalmente inacessíveis aos venezuelanos.
Para pedir a carne bastava ir ao balcão do talho e escrever num bloco dos pedidos a lista de carnes que queria. Em geral ficava tudo pronto e embalado num verdadeiro mimo em caixinhas próprias e protegidas em plástico em menos de meia hora, coisa que nunca vi em Portugal. Durante o intervalo aproveitava para ir ao excelente pão quente e tomar um cafezinho expresso; da lista habitual um exemplo - “chuletón” argentino – x unidades, “ojo de bife uruguayo”- y unidades, “punta trasera" – 8 steaks 1 quilo, “carne de lomito” – peça de 3 quilos e cortar “rebanado”, o restante que sobrar da peça que tiver mais gordura cortar em pedaços para “fondue”. E que belos bifes e fondues se comiam em Caracas, com molhos de maionese feitos à parte.
Deixei de ir ao Rey David a partir da altura em que um pistoleiro entrou nas suas instalações, os guardas não reagiram e o filho do proprietário foi morto por se recusar a entregar o relógio!
Se já nem no centro bem guardado de Caracas podemos estar seguros, mesmo com guardas armados a atuar em todos os estabelecimentos e edifícios da zona central e leste da cidade onde vive a classe alta e média alta, o melhor seria mesmo regressar a Portugal.
Regressei, podem não acreditar mas sinto saudades daquilo apesar de ser quase uma réplica do inferno na terra, uma terra muito bonita e com histórias pitorescas e muito interessantes dignas de um bom romance.