Armando Vara começou por bradar contra a "duvidosa moralidade" de alguns políticos. Na altura guiava um FIAT 600 e vivia em Bragança. Esta é a história da queda de um influente homem do "aparelho" do PS
Imagine-se, o leitor, no início do ano de 1985. Por alguma razão está em Bragança e folheia a Voz do Nordeste, jornal regional que acaba de chegar aos quiosques.
Como tem tempo, pára para ler a coluna do jovem cronista, e proprietário, Armando Vara, recente trintão.
A dada altura, quando o País inteiro se queixava do marasmo do Bloco Central, do desemprego, dos políticos, era isto que leria: "O negocismo instalado, a noção de proveito pessoal que alguns têm da política tem a ver com a ausência de ideologia que em nome de uma prática de duvidosa moralidade parece começar a fazer escola." A ironia quase nunca está ausente da biografia política. Camilo Castelo Branco pôs Calisto Elói (de Silos e Benevides de Barbuda) a denunciar a corrupção moral em Portugal, no planalto transmontano, e depois teve a maldade de lhe mostrar Lisboa, para, no fim, se poder rir dele. Quem fez o mesmo a Armando António Martins Vara? Foi pelo seu próprio "pulso", concordam amigos e críticos, que construiu o trajecto que começou em 1954, em Lagarelhos, Vilar de Ossos, concelho de Vinhais, Bragança. E que o trouxe aqui, ao centro das suspeitas de tráfico de influências, no caso Face Oculta, de que é o arguido de nome mais sonante.
A vida pública de Armando Vara, essa, oscilou sempre entre a ribalta das interrogações sobre a lisura dos seus processos e a tranquilidade, discreta, do "proveito pessoal", para usar as suas palavras.
Mas nem sempre foi assim. Na década de oitenta, Vara esteve imparável. E ninguém lhe apontou o dedo. Estava na Juventude Socialista desde o início, em 1974, e descontando uma pequena dissidência, quando apoiou Otelo Saraiva de Carvalho contra Ramalho Eanes, nas presidenciais de 1976, fazia o seu caminho.
Trabalhando (começou num pronto-a-vestir, ainda no marcelismo, chamado Teté Rodrigues, em Bragança), estudando (Filosofia, em Coimbra, que nunca concluiu) e intervindo naquele meio pequeno e conservador, através da RDP-Nordeste, com um programa sugestivamente chamado Quando a Cultura For Pão. Conduz um Fiat 600 e segue o seu caminho.
A primeira vez que se cruza com a Caixa Geral de Depósitos (CGD) não faz manchetes de jornal.
Ganha um concurso para funcionário de nível 7. Trabalha atrás do balcão da dependência de Mogadouro. Mas, com 29 anos, a sua actividade política já o levara às listas do PS. Seis meses depois de entrar na Caixa, é requisitado para substituir um deputado no Parlamento, em São Bento.
Entre 1983 e 2001 foi lá que viveu.
O 'GRANDE LÍDER LOCAL'
O distrito de Bragança mantém-se, apesar da distância, como a sua ligação umbilical à alta política de Lisboa. É lá que constrói a sua influência. Funda o jornal, candidata-se e ganha a distrital do PS, mantém os amigos velhos e faz novos, não importa de que cor partidária.
Quando dez das 12 câmaras municipais do distrito já são socialistas, a contraciclo com o País, que vai ficando cada vez mais laranja, em meados dos anos 80, já era altura de alguém elogiar publicamente o trabalho de Armando Vara. É Mário Soares, em 1986, numa entrevista ao jornal Tempo, que o faz: "É um grande líder local", garante o futuro Presidente da República.
O elogio circunscreve, demasiado, o raio de acção de Vara. Ele já não se contenta em ser um líder local. Empenha-se na candidatura, falhada, de Jaime Gama à liderança do PS. E galga etapas, na Fundação José Fontana, ligada aos socialistas, que edita a revista Finisterra. É aí que conhece Maldonado Gonelha, ex-ministro da Saúde de Soares, que reencontrará na administração da Caixa, décadas mais tarde.
É, também, nessa altura que estreita laços com um outro jovem (três anos mais novo), também nascido em Trás-os-Montes.
Juntos, José Sócrates e Armando Vara subscrevem um projecto de lei que permite a divulgação de sondagens, durante o período das campanhas eleitorais. Ficam amigos, desde então. A ponto de se tornarem uma dupla política de peso, quando António Guterres começou a trabalhar para apear Jorge Sampaio da liderança do partido.
Armando Vara ganha, assim, o gosto pela política de aparelho. Afinal, dominar as estruturas do partido tinha-lhe permitido chegar até ali. E esse talento para organizar, disputar influência, contar "espingardas ", era-lhe tão natural como a outros discursar para plateias enlevadas. Naturalmente, concentrou-se no que sabia fazer melhor. E desistiu da via que iniciara com as crónicas e os programas de rádio. A sua tarefa era vencer, não convencer.
Como lembra Manuel Meirinho Martins, professor de Ciência Política no ISCSP, "a política não é só feita de ideias e estratégias". Há, também, outras tarefas necessárias, como a gestão das máquinas partidárias. Desde que os partidos existem, prossegue Meirinho, há quem se ocupe de gerir as "redes clientelares", essenciais à manutenção do poder. E o termo "não é necessariamente pejorativo": há redes clientelares legítimas, que se organizam em torno de interesses claros e não ameaçam nem a lei nem a ética. Armando Vara tem o mesmo perfil, e o mesmo percurso, desses "bons gestores".
E a lógica do PS, de "fechamento sobre si próprio", favorece, segundo Tiago Fernandes, professor de Ciência Política na Universidade norte-americana de Notre Dame, a emergência do aparelhismo. Todos os partidos são "aparelhos", é certo.
Mas há razões históricas que acentuam a visibilidade das figuras de segundo plano.
"O PS perdeu ideologia e os governos Sócrates são a consagração dessa vertente tecnocrática", conclui Tiago Fernandes, dando razão à preocupação do jovem Armando Vara. Os dois investigadores coincidem num ponto: esta está longe de ser "uma especificidade portuguesa".
O MINISTRO IMPRESCINDÍVEL
Tal como a Sócrates, a vida pública absorve Vara. Mas, juntos, tentarão, com pouco êxito, um empreendimento privado. Em 1990, associam-se a Rui Vieira, Sobral de Sousa (arguido, com António Preto, do PSD, no caso da "mala") e a Simões Costa, numa empresa de distribuição de combustíveis, a Sovenco. Todos são socialistas, mas Sócrates e Vara abandonarão a sociedade passado pouco mais de um ano, sem terem feito "um negócio que fosse", garante Simões Costa ao jornal I. Guterres chama-os para a sua campanha interna.
Em Fevereiro de 1992, Guterres derrota Sampaio. Vara e Sócrates integram o círculo próximo do novo líder. Quando o cavaquismo acaba (Armando Vara foi um dos que buzinaram na Ponte 25 de Abril, com o seu filho mais novo, ainda pequeno, no banco de trás), e Guterres passa a chefiar o Governo, Sócrates e Vara são chamados para o Governo. O primeiro será secretário de Estado do Ambiente, o segundo secretário de Estado da Administração Interna.
E aqui acaba a progressão pacífica.
Vara começa a tornar-se conhecido pelas razões erradas. Em Abril de 1998, vai a Garvão, concelho de Ourique, uma zona afectada por temporais, no Inverno anterior, para se reunir com o autarca do PSD José Raul dos Santos. Quando chega, vê que foram convocados jornalistas. "O que é que eles estão a fazer aqui?", pergunta aos assessores. É então que diz, para Raul dos Santos: "Eu quero que você se f..." e chega a ameaçar com uma inspecção.
Sentindo-se insultado, Raul dos Santos recorre aos tribunais. O julgamento só se fará em 2001 (espécie de ano horrível de Vara...). No tribunal, João Nabais, seu advogado justifica a frase: "Não é elegante, mas não confere nenhuma ilustração especial. Equivale a dizer 'eu quero que você se lixe, vá dar uma volta'" Armando Vara é condenado a pagar uma indemnização de 2 125 euros. É, até agora, a única condenação que tem.
Pior que isso era o que estava a acontecer, desde o início de Dezembro de 2000.
Vara tinha sido promovido a ministro-adjunto de Guterres, com a tutela do Desporto (e do Euro 2004). Mas uma notícia do Expresso revelou um escândalo que ditaria a sua demissão. Vara ajudara a criar a Fundação para a Prevenção e Segurança, um organismo que duplicava as estruturas já existentes no Estado para combater a sinistralidade rodoviária. "Coisas daquelas foram criadas às centenas pelo País todo", disse, na altura, para se justificar. Mas agora era ele, Armando Vara, que enchia colunas de opinião nos jornais, que lhe atribuíam, precisamente, os mesmos defeitos que ele criticava nos outros, quando escrevia n'A Voz do Nordeste.
Uma comissão parlamentar de inquérito e uma investigação do Ministério Público ilibaram-no de qualquer responsabilidade criminal. Mas Guterres acabou por deixar cair o seu homem de confiança.
Foi numa quinta-feira atarefada para o primeiro-ministro. Em São Bento, num debate mensal, Durão Barroso, líder do PSD, apresenta documentos novos sobre a Fundação que deixam Guterres sem resposta.
Os assessores de Jorge Sampaio, com quem Guterres se reuniria de seguida, informam o Presidente do clima vivido no Parlamento. À saída do encontro, o primeiro-ministro diz que aceitou o pedido de demissão de Vara. Este ficou convencido de que fora Sampaio a exigir a sua demissão.
Fontes próximas do ex-Presidente garantem que não terá sido assim.
"Nunca mais agirei na minha vida com a inocência e com a ingenuidade com que agi. Percebo hoje bem aquela velha expressão que diz que 'à mulher de César não basta ser séria: é preciso parecê-lo'", assume Vara, numa entrevista a O Diabo, em Março de 2001. Na mesma entrevista, contradiz-se: "Em qualquer situação, um cidadão presume-se inocente até que um tribunal o considere culpado. Não percebo porque é que na política se deve inverter o ónus."
O EMPRESÁRIO DOS 'CONTACTOS'
Caído em desgraça? Nem por sombras....
Guterres confia-lhe a coordenação autárquica do partido (para as eleições de Dezembro de 2001). Aproximava-se um novo desastre político.
Para piorar, Vara reingressa na Caixa, passados 18 anos sobre os escassos seis meses em que lá trabalhara, em 1983. E é-lhe oferecido o cargo de director-adjunto do Departamento de Obras e Património.
"Salto à vara", foi um dos trocadilhos que passou a segui-lo. E para piorar ainda mais, o seu nome é falado como estando prestes a integrar a SAD do Benfica, o que leva o caso do político socialista demitido por uma acção suspeita a encher páginas de jornais desportivos.
Regressa a Bragança para um jantar de "desagravo" e confessa: "Sei hoje que as pessoas da minha terra continuam a gostar de mim e não têm vergonha de estar comigo." Outros teriam vergonha? Guterres não. Ouve-o dizer, publicamente, que não se importa de candidatar Daniel Campelo, o deputado limiano do CDS, pelo PS. Ouve-o dizer que Fátima Felgueiras "está convencida da sua inocência e eu também estou". Ouve-o assumir (ao Expresso) que "o PS está instalado no poder, os principais quadros do partido estão nas autarquias, no Governo, no Estado, nos organismos públicos". E ouve-o prever, com assinalável prazer da tal ironia histórica, que, caso o PS perdesse Lisboa, Coimbra e Setúbal, nas autárquicas, "provavelmente haveria uma agitação no PS a seguir às eleições".
Houve agitação, e não foi pouca. Guterres demitiu-se, falando de pântano. E os miasmas chegaram a Armando Vara.
Submergir era, na altura, um hábito que começava a ganhar. Tira uma pós-graduação no ISCTE e, um ano depois, acaba a licenciatura em Relações Internacionais, na Universidade Independente. Curiosidade: fá-lo apenas três dias antes de assumir um novo, e destacado, papel na Caixa. É agora, administrador com os pelouros do crédito, das participações financeiras do banco (EDP, PT, ZON, BCP e Cimpor), pela mão de Carlos Santos Ferreira, compadre de Guterres.. "Tenho 22 anos de CGD. Há quatro anos regressei. Não vejo onde isso possa ser politização", diz. Mas ninguém acredita que, naquela ascensão de administrativo a administrador não houvesse uma mão política. José Sócrates é o primeiro-ministro. E todos os partidos têm o hábito de "premiar" os seus com cargos apetecíveis (quem não se recordava da nomeação de Celeste Cardona, também ela para a Caixa?).
Quando, em Dezembro de 2007, se muda, com Carlos Santos Ferreira, da Caixa para o maior banco privado português, o BCP, conta com o apoio de accionistas importantes do banco, como Joe Berardo, António Mexia (EDP), Manuel Fino (Cimpor), a Sonangol e a Teixeira Duarte. Obtém 90% dos votos.
Todos sabem que Armando Vara é um homem competente e determinado.
Que é rápido a decidir. Que gosta do "imperativo de acção", como lhe chama.
Que detesta os snobs da política.
Que nutre um público "desprezo" por intelectuais e nomes de família. Que o seu lema é: "Há os que perdem muito tempo a pensar, eu faço." Não se lhe conhecem gostos luxuosos.
Quase não bebe vinho. Mobilou o seu apartamento em Telheiras, no IKEA. É discreto.
E tem, como lembrou o economista João Duque, uma agenda recheada de contactos preciosos que costumam atender-lhe o telemóvel.