Angola já pagou 182 milhões de euros a construtoras. Mas contas não batem certohttps://expresso.pt/economia/2019-10-11 ... atem+certoAngola já pagou €182 milhões. Mas há cortes e desacertos nos cálculos
ABÍLIO FERREIRA
Um ano depois da ofensiva diplomática em Luanda do primeiro-ministro, António Costa, ter dado o pontapé de saída, o movimento de regularização das dívidas de Angola às construtoras portuguesas regista avanços favoráveis, mas as contas nem sempre batem certo e uma boa parte dos intervenientes está insatisfeita com os resultados.
O tema é uma moeda de duas faces. Há o lado benigno que resulta de negociações fechadas, pagamentos realizados e dinheiro a circular. Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros, os acordos firmados “diretamente entre as empresas e as autoridades angolanas” já drenaram 75 mil milhões de kwanzas (€182 milhões) e “representam três quartos da dívida certificada até à data”.
No caso das construtoras, o lado inquietante mistura dívidas não reconhecidas, revisão dos valores, imposição de títulos de dívida pública como pagamento e severas perdas cambiais nas empreitadas registadas em moeda local. Um bom sinal é que as associações empresariais deixaram de lidar com pedidos de ajuda de construtoras desesperadas com as dívidas de Angola. “Pelo que sabemos, o programa decorre sem sobressaltos, segundo os princípios definidos. Muitas empresas já receberam, mas desconhecemos o grau de execução. As únicas queixas decorrem das perdas que resultam da desvalorização cambial”, diz ao Expresso Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da Associação de Empresas de Construção e Obras Públicas e Serviços (AECOPS).
Reconhecer, certificar e acertar o modo de pagamento, sendo que a aceitação de títulos de dívida pública, convertíveis na banca com algum desconto, agiliza a operação. Dito assim, parece simples. Mas há sempre pedras no caminho para remover. Este é um processo “tudo menos linear, em que cada contrato tem de ser escrutinado, podendo surgir divergências e litígios”, reconhece Ricardo Gomes.
PERÍMETRO ESTATAL
Vamos a casos práticos. A Cogedir, uma empresa de projetos, reclama 1,7 milhões de dólares por serviços prestados ao governo da província de Cuando-Cubango, na altura dirigida pelo general Higino Carneiro, entretanto caído em desgraça. Mas as duas partes estão longe de um entendimento. O empresário Moutinho Cardoso fica satisfeito se no rescaldo da operação receber 400 mil dólares. As autoridades “cortaram nos valores do contrato e não reconheceram uma parte dos custos e trabalhos”. Depois, “propuseram o pagamento em Obrigações do Tesouro (OT) a 10 anos”, que a Cogedir recusou. Em resumo, “as contas continuam por acertar”.
A experiência da Lena Engenharia, do Grupo Nov, é semelhante. No rescaldo do ciclo depressivo 2012/15, a dívida somava 8 mil milhões de kwanzas. A cotação oficial à época ditava que um dólar valia 100 kwanzas — a relação atual é de 1 para 378. “70% da dívida já está certificada, mas como decorrem ainda negociações não se avançou para a fase de pagamento”, diz o presidente da Lena, Joaquim Paulo Conceição. O gestor não arrisca um número final.
Nos contratos em moeda local, o valor desfalece por causa da severa desvalorização cambial
A Lena está disponível para receber em títulos de dívida pública, seguindo uma prática generalizada que levou construtoras como a Mota-Engil ou a Teixeira Duarte a acumularem, respetivamente, €152 milhões e €24,5 milhões de títulos de dívida pública. No caso das empresas angolanas, 60% das dívidas (211 mil milhões de kwanzas no total) foram pagas em OT. O conglomerado Elevo, que absorvera construtoras como Edifer, MonteAdriano ou Hagen e esbraceja para sobreviver, já manifestara a deceção por só ter conseguido certificar uma pequena parte dos €160 milhões reclamados. Contactado esta semana, o presidente do grupo, Gilberto Rodrigues, respondeu “não ter disponibilidade para falar ao Expresso”.
Este é “um tema delicado”, dizem os industriais, que não querem ferir suscetibilidades em Luanda, invocando a singularidade africana em que “as faturas são do sexo feminino mas nem sempre dão à luz ao fim de nove meses”.
Uma parte das divergências no acerto de contas, segundo fontes do sector, residirá na definição do perímetro estatal. As construtoras podem estar a incluir na lista das dívidas trabalhos para empresas ligadas a dirigentes do MPLA ou do aparelho de Estado que a Administração Central não reconhece. “É natural que o Governo seja criterioso e descarte dívidas de empresas que, de facto, não são da esfera pública”, reconhece o presidente da AECOPS.
Quando o tema são as dívidas, António Mota, o patrão da Mota-Engil, repete o lema de que “Angola paga tarde, mas paga sempre”. Ricardo Pedrosa Gomes subscreve e reconhece que “o histórico do relacionamento confirma tal visão”. Mas nem sempre o dinheiro chega a tempo. Quando, no fim de 2018, declarou falência, a MSF Engenharia apontou a dívida angolana (€46 milhões) como uma das causas do colapso.
Produção no exterior ganha fôlego. México bate AngolaA indústria da construção opera em 35 mercados. No biénio 2017-18, a produção subiu €900 milhões
A produção das construtoras portuguesas no exterior ganhou um novo fôlego e está em modo de recuperação depois de um mínimo relativo em 2016 (€4,4 mil milhões). No biénio 2017-18, a brigada nacional que opera em 35 países faturou mais €900 milhões, mas está ainda longe do máximo da década (€5,6 mil milhões). A evolução dos novos contratos segue a mesma tendência. A carteira de obras no fim de 2018 estava nos €5,3 mil milhões. Esta década a produção regista uma subida acumulada de €1,6 mil milhões (40%).
A geografia do negócio está em mudança. A novidade de 2018 é que o México ascendeu ao pódio externo (€1,2 mil milhões) puxado pelo desempenho da Mota-Engil, rompendo com a histórica hegemonia de Angola (€1,1 mil milhões). Mas esta glória é efémera. Olhando para os novos contratos é inevitável que Angola regresse à liderança folgada. O continente africano beneficia de uma pedalada mais vigorosa e Angola volta a ser a locomotiva de um pelotão que congrega agentes como Moçambique, Argélia, Malawi e um novo mercado em ascensão — África do Sul (€131 milhões). Com a carteira no México em declínio, o continente americano perde sedução. Mas, Brasil, Peru e Colômbia permanecem como mercados fundamentais. Nas duas geografias, a indústria portuguesa está no top 3 da produção europeia.
Ricardo Pedrosa Gomes, presidente da AECOPS-Associação de Empresas de Construção, Obras Públicas e Serviços, acentua o “mérito da indústria portuguesa” em projetos de grande envergadura e defende “o reforço da cooperação entre Estado e empresas, através da cobertura do risco de crédito e na gestão da dívida para impedir que atrasos no pagamento inviabilizem a afirmação no exterior”. O industrial receia que as posições conquistadas na região subsariana de África estejam “sob a ameaça da cobiça de multinacionais”, depois da União Europeia incluir a região na lista dos financiamentos prioritários. As construtoras portuguesas “precisam de mecanismos de apoio idênticos aos dos seus adversários”, avisa Ricardo Pedrosa Gomes.
Na Europa, o mercado polaco é o único que revela vitalidade (€291 milhões), respondendo por 46% da produção em todo o continente. As construtoras lusas revelam dificuldades em singrar em mercados maduros. A produção no exterior equivale a 6% da balança exportadora de bens e serviços. A.F.