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Poder e violência - Baptista Bastos

MensagemEnviado: 24/9/2004 17:08
por Tiger
Jorge Sampaio está preocupado e exorta. Preocupado com o estado a que as coisas chegaram, em especial nos domínios da saúde e da educação. E exorta o Governo a mudar de carril. Há algo de ambíguo neste estado d’alma do Presidente em quem votei.

Foi Sampaio que lavrou o nihil obstat ao Executivo Santana, alegando que o fazia em nome da estabilidade. É a estabilidade de cemitério que aí está. E Santana mais não faz do que cumprir o que a Direita promete: servir os interesses de uma classe, em detrimento de outras.

Admito que Jorge Sampaio seja assaltado por medonhas assombrações, perante o desenrolar de acontecimentos que tornam a sociedade portuguesa cada vez mais macilenta. Mas é ele o principal responsável do que sucede. Dois meses depois, todos verificamos que a sua decisão foi absolutamente imprestável, para não dizer moralmente reprovável e politicamente absurda.

Portugal está profundamente dividido, e as relações de domínio-submissão assumem aspectos tão surpreendentes quanto abjectos. A decisão presidencial, de reconhecer a sucessão governativa como legal, não legitima o erro clamoroso cujas consequências dramáticas são visíveis a olho nu.

O Estado degrada-se. O Governo empurra Portugal para um atoleiro sem saída - e Jorge Sampaio preocupa-se e exorta. Creio (e muito me custa escrevê-lo) que o Presidente da República adormeceu sobre o mostrador da História, e, agora, despertou, estremunhado, para este pesadelo.

O Executivo Santana Lopes é o caso mais estremado da associação entre violência e poder. Um Átila que destrói tudo por onde passa. Portugal é um país à deriva, com bandeirinhas amarelecidas e pendentes. Nas janelas dos nossos momentâneos alvoroços. A Justiça é uma vergonha, até pelos ocultos meandros por ela próprio favorecidos. A Educação, uma hecatombe que já não reclama análises porque nenhuma análise parece indicar o caminho certo. A Saúde, a usurpação de um dos mais importantes direitos da população, meticulosamente organizada por um ministro católico mas pouco cristão, e que, no Governo Barroso, procedera à mais violenta forma terror contra o mundo do trabalho. A administração pública caminha para o naufrágio. O desemprego impõe novos modos de submissão, de dependência e de docilidade. A fuga ao fisco transformou-se num desporto requintado.

A palavra «reforma» tem sido a panaceia, desde o Liberalismo do século XIX, com a qual se pretende resolver ingentes problemas dos portugueses. Porém, os poderes constituídos, desde então, apenas cederam a compromissos impostos pelas classes dominantes. Basta ler Oliveira Marques ou Vasco Pulido Valente para se perceber os fins elaborados pelo conjunto do «sistema» e as consequências até agora dali advenientes.

É a bandeira da «reforma» de novo agitada por todos aqueles que, na esfera dos valores, preservam os modelos fundamentais de uma sociedade estruturalmente desajustada, por injusta. E, também, o pretexto dos que, sem ideias de seu nem doutrina normativa, demonstram ser incapazes de realizar as reformas que, na realidade, se impõem.

Os governos, em Portugal, atingiram, nos últimos vinte e cinco anos, o grau zero de comportamento social. Cada um é pior do que o anterior. Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal tinham projectos de sociedade e sistemas de governo, todos eles com funções e objectivos específicos, embora diversificados. A questão ideológica era-lhes fundamental. Sabiam que o poder é de natureza simbólica, sem esquecer os conflitos que as suas opções suscitavam. Mas eram projectos políticos, alicerçados não só em convicções, também em teorias, em práticas exercidas em outros países, numa poderosa intuição e num carisma impressionante.

As lutas que atravessaram a sociedade portuguesa enriqueceram-na e enriqueceram-nos. O travejamento político que as animou constituiu um dos momentos mais altos do civismo nacional, pela participação e pela intervenção colectivas, a todos os níveis. Há homens e mulheres de Esquerda e de Direita que enobreceram, com contributos assinaláveis, o renascer e o desenvolver do pensamento democrático. A «normalização» não foi a correspondente de «reconciliação» (juntar os opostos), sim a «conciliação» (acatamento e, até humilhação) de uma classe sobre outra. O que está a acontecer em Portugal é a síntese de todas as conciliações e a perda das características essenciais dos partidos. E Jorge Sampaio, agora, preocupa-se e exorta...

Baptista Bastos in Jornal de Negócios Online