Carta à Al-Qaeda de Uma Cidadã da Europa Vencida
(
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Senhores, sairemos do Iraque. Do Afeganistão. Dizei Senhores da Vossa vontade e nós assim o faremos. Nem mais livros, pinturas, esculturas... que Vos ofendam. Dizei só o que quereis que apaguemos, queimemos, destruamos. Que tudo faremos, senhores. Para que haja paz.
Perdoar-me-ão mas não sei como Vos hei-de dirigir esta carta. Não por falta de emissário. Como sabeis, há no meu país quem se tenha proposto falar convosco. Mas receio que o nosso emissário não Vos fale do meu propósito. Acontece que eu sou uma simples mulher e, como o nosso autoproposto emissário bem sabe, Vós não achais as mulheres capacitadas para tratarem destes assuntos. Assim, evitando criar embaraços ao nosso emissário, tomei a iniciativa de Vos dirigir abertamente esta carta. Contudo, desde já Vos digo: se Vos considerardes ofendidos cada vez que nas páginas dos nossos jornais observais um rosto de mulher então nós deixaremos de aparecer. Que não seja em nome das mulheres que se faça a guerra. E nós, Senhores, tudo faremos para que haja paz.
Se também Vos parecer adequado, cobriremos as nossas cabeças e os nossos rostos, para que o Vosso pensamento não se turve ao fitar-nos nas ruas. E, claro, para que haja paz. De igual modo, se Vos parecer bem, nós, as mulheres, deixaremos de ocupar cargos políticos pois compreendemos perfeitamente que Vos ofenda a hipótese, embora remota, de Vos mandarmos uma ministra. Jamais tal acontecerá. Para que haja paz.
Nas nossas escolas ensinaremos que o mundo muçulmano não se tem desenvolvido não por não ser democrático mas sim porque o Ocidente não deixa. E desde já, Senhores, aguardamos a Vossa inspirada explicação para o facto de hoje ser a nação mais poderosa do mundo aquela maldita terra que só tinha índios, perus e os bêbedos, ignorantes e tarados sexuais que nós para lá mandávamos quando Vós já estáveis aprofundando esses caminhos da verdade. Mas, Senhores, para que haja paz e não rebentem bombas nas nossas escolas ensinaremos o que achardes certo. Só esperamos que nos digais o que é certo.
Jamais referiremos que a separação da religião do Estado foi determinante no progresso do Ocidente. Isso não só pode legitimamente ser interpretado por Vós como uma crítica ao Estado islâmico que quereis erguer, como revela logo uma perfídia da nossa parte: afinal seremos nós mais desenvolvidos que Vós? Quem, a não ser os nossos líderes, pervertidos pelo Grande Satã (esses líderes que nós substituiremos por aqueles que Vós sabiamente nos indicareis!), nos garante que existe alguma superioridade na vida do Ocidente? O que valem os nossos serviços de saúde, a nossa educação, os nossos museus, o nosso Estado de direito, os nossos partidos políticos... ao pé dos tesouros de saber e de espiritualidade que se encerram nessas vidas regidas pelos ditames dos "mullahs"? Para que haja paz, Senhores, jamais exaltaremos este ocidente ao qual desde já retiro a maiúscula esmagada pela superioridade do Vosso pensamento.
Das nossas cidades baniremos os símbolos do nosso modo de vida, sejam eles as torres ou as grandes empresas multinacionais. Acabaremos com os grandes acontecimentos que justamente podem ser interpretados por Vós como uma tentativa de Vos humilhar ou chocar. Para que haja paz tudo faremos.
Se achardes bem acabaremos também com esses espectáculos que conspurcam as Vossas almas tão preocupadas com o pecado. Nem "rock", nem corpos desnudos nas praias, nem mais livros, pinturas, esculturas... que Vos ofendem. Dizei só o que quereis que apaguemos, queimemos, destruamos. Que tudo faremos, Senhores. Para que haja paz.
E claro, Senhores, sabemos bem que a Vossa alma não pode tolerar que chamemos irmãos aos judeus. Descansai, senhores que, de agora em diante, jamais tal acontecerá. E mesmo quando, como aconteceu nesta semana, os soldados de Israel detiverem um menino palestiniano de dez anos com o corpo enlaçado por um cinto de explosivos, nós, Senhores, apenas falaremos da espiral da violência e colocaremos no mesmo prato da balança um exército e os homens que ficaram nas suas casas à espera que o menino se explodisse. Mas se, mesmo assim, não ficardes satisfeitos, Senhores, avisai e nós condenaremos os soldados de Israel e chamaremos resistentes aos homens que mandam meninos para a frente dos tanques ou explodir-se em Israel. Para que haja paz, o faremos.
E claro, Senhores, sairemos do Iraque. Do Afeganistão. Mas estremecem-nos as almas pensando como poderemos expiar nós a tamanha agressão que Vos fizemos. Quantas dores e trabalhos tereis para fazer esquecer àquela gente as constituições que assinaram. O sonho de uma nova vida. O desfazer do projecto nuclear líbio. O vento de mudança na Síria e no Irão... Ó Senhores, perdoai-nos que a nossa arrogância foi infinita e Vós bem nos avisasteis! Ó Senhores, perdoai-nos esses tempos de tentação. Esquecei para sempre a afronta que Vos fizemos em Timor. Como não percebemos a tempo que a luta pela independência do povo de Timor era uma ofensa tão grande para todos os muçulmanos?! Como foi tão grande a nossa cegueira?! Como foi possível termos pedido, exigido a intervenção dos EUA naquele território para erradicar de lá o poderio das milícias muçulmanas? Ó Senhores, perdoai-nos que não foi por mal e, se quiserdes, hoje mesmo, exigiremos que o Nobel da Paz seja retirado a Ramos Horta. Para que haja paz. E, claro, a cada dia 11 ficaremos fechados nas nossas casas, sussurrando para não despertar a Vossa justa ira, agradecendo a cada segundo a Vossa clemência por ainda não nos terem degolado, rebentado, queimado com ácido, lapidado... O facto de estarmos vivos não é afinal a prova que faltava da Vossa bondade e tolerância?!
E que mais quereis que façamos, nós, portugueses? Sobretudo, como poderemos expiar o pecado original de termos, no nosso corpo, misturado o sangue dos judeus com o dos muçulmanos? E a Reconquista? Quereis Vós reinstaurar o Al-Andaluz? Dizei Senhores da Vossa vontade e nós assim o faremos. Para que haja paz.
Para que haja paz bombardeai o que quiserdes, matais quem quiserdes, desde que seja bem longe daqui. Para que haja paz.
P.S. - Tende cuidado com o nosso emissário. Sabei Senhores que há quase trinta anos não hesitou em chamar paranóicos àqueles que queriam instaurar o comunismo em Portugal. Pensou mesmo que, se fosse necessário, portugueses combateriam contra portugueses para que tal não acontecesse. Hoje o nosso emissário defende que se negoceie com quem nos mata. Mas há sempre o risco de que o velho democrata desperte nele. Por mais que Vos custe a acreditar em tal heresia, há ainda entre os portugueses quem espere que o nosso emissário perceba que a ameaça de hoje não é menos grave que a de 1975, argumentando que, antes pelo contrário, aqueles a quem ele chamou paranóicos apenas nos queriam governar de outro modo. Em nome do socialismo. E Vós apenas nos quereis matar. Em nome da paz.
Ah! Senhores, que voltas darão hoje os paranóicos de outrora ao perceberem que, em 1975, não deviam ter falado de socialismo mas sim de paz. Acreditai, Senhores, mudam-se os tempos e dobram-se as vontades. Para que haja paz!