Histórias de Consolidação

Histórias de Consolidação
teodora.cardoso@clix.pt
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Porque a ignorância da história não aproveita a ninguém, vale a pena recordar as medidas então tomadas em duas pequenas economias abertas que atravessavam um período de ajustamento radical a crises muito graves: a Suécia e a Argentina.
Em meados da década de 90, os défices orçamentais estavam, como agora, na ordem do dia. Em Portugal, discutiam-se sobretudo as implicações da convergência nominal, a que nos obrigava a decisão de aderir à moeda única.
Talvez por isso e porque o debate económico era então mais restrito do que hoje, não se deu muita atenção ao que por essa altura se passava noutros países que então se debatiam com graves problemas orçamentais.
Porque a ignorância da história não aproveita a ninguém, vale a pena recordar as medidas então tomadas em duas pequenas economias abertas que atravessavam um período de ajustamento radical a crises muito graves: a Suécia que, na sequência de um programa de liberalização financeira e descida dos impostos e das taxas de juro, tinha passado por um período de sobreaquecimento da procura interna e de perda de competitividade, a que se seguiu uma forte e prolongada recessão e a explosão do défice orçamental (11,6% do PIB em 1993); e a Argentina que, com o novo regime do Presidente Menem e do Ministro Cavallo, procurava libertar-se de uma pesada herança de hiperinflação e recessão.
Um texto de Sebastian Edwards de 1995 descreve o programa de estabilização argentino, cujo objectivo era a redução drástica do défice orçamental e a reconquista da confiança dos mercados financeiros internacionais.
Dele constavam medidas de natureza fiscal, sobretudo viradas para a simplificação do sistema e para a sua maior eficácia. Apesar delas, as receitas fiscais em 1994/95 situavam-se em redor dos 12% do PIB, contra 20% em 1990.
A grande contribuição para a redução do défice orçamental resultou, assim, das despesas: o investimento público sofreu um corte drástico (“em 1991 as despesas de capital eram inferiores em mais de 25% aos níveis já deprimidos de 1987”); o número de funcionários da administração central foi reduzido em 100 mil entre 1991 e 1992; 200 mil professores foram transferidos para os orçamentos provinciais; os preços dos serviços públicos foram drasticamente aumentados, por forma a cobrirem os custos; e, a partir de 1990, o governo lançou-se num programa agressivo de privatizações, destinado não só a obter receitas, mas a eliminar os subsídios necessários para cobrir os crónicos défices das empresas públicas.
Em consequência destas medidas, em 1993 o défice público consolidado não ultrapassava os 0,2% do PIB e o rácio da dívida pública era inferior a 30%. Apesar dos efeitos da crise do México em 1994/5, o défice nunca ultrapassou os 3,5% do PIB. Em 1998 era de 2,1% e a dívida pública situava-se em 41%.
“What went wrong?” é o título do capítulo do livro de Michael Mussa (o economista-chefe do FMI aquando do colapso argentino do final de 2001) apropriadamente intitulado “Argentina and the Fund: From Triumph to Tragedy”.
Por estranho que pareça, na interpretação largamente partilhada de Mussa, o que correu mal foi a política orçamental argentina. O Fundo estava muito mais preocupado com a taxa de câmbio do que com o orçamento.
Revelou-se, por isso, altamente permissivo ao não obrigar a aprofundar o ajustamento orçamental no período de crescimento rápido que se seguiu à crise de 1994/5, contentando-se em manter as aparências de controlo, graças à contabilização de receitas irrepetíveis de diversas naturezas.
A parte mais recente da história argentina está ainda na memória de todos. Passemos, por isso, à Suécia. Também aí se debateu a necessidade de um ajustamento drástico para restaurar a credibilidade junto dos mercados financeiros.
No entanto, prevaleceu uma mudança de fundo no processo orçamental, considerado extremamente frágil. As medidas mais importantes respeitaram a:
(1) reduzir a parcela das despesas sujeita a ajustamentos automáticos;
(2) iniciar a elaboração do OE com a fixação de um limite global às despesas;
(3) estabelecer programas plurianuais de dispêndios, não susceptíveis de ajustamentos discricionários;
(4) restringir a capacidade do Parlamento emaumentar despesas e impor a aprovação do orçamento como um todo.
A par destas medidas, que transformaram a Suécia num dos países desenvolvidos com um processo orçamental dos mais modernos e eficazes, foram adoptadas providências imediatas quer em matéria fiscal (como a subida dos impostos sobre os combustíveis), quer de corte de despesas menos essenciais.
Porém, como o então ministro das Finanças e actual primeiro-Ministro sueco afirmava em 1995, no mesmo simpósio em que Edwards apresentou o seu trabalho sobre os países latino-americanos, “um processo de consolidação orçamental tem duas fases: fazê-la e mantê-la”.
Para os mercados financeiros, pela sua própria natureza, o que conta é a primeira fase. Para os países, contudo, é bem mais importante que, como na Suécia, o orçamento permaneça equilibrado e a economia e o emprego cresçam.
Para isso é necessário, mais uma vez nas palavras de Göran Persson, que os custos da consolidação sejam partilhados de forma justa, que o programa seja pensado e apresentado de modo coerente, tornando claro a cada grupo de interesses que ele não será o único a suportar os sacrifícios.
Esta é a razão porque as medidas dramáticas e o zurzir nos funcionários públicos ou neste ou naquele político nos deviam impressionar muitomenos que a adopção ponderada de um verdadeiro programa de consolidação orçamental.
Na Suécia, a aprovação parlamentar desse programa foi de 94%. Os resultados estão à vista e o modelo europeu não tem que envergonhar-se.
teodora.cardoso@clix.pt
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Porque a ignorância da história não aproveita a ninguém, vale a pena recordar as medidas então tomadas em duas pequenas economias abertas que atravessavam um período de ajustamento radical a crises muito graves: a Suécia e a Argentina.
Em meados da década de 90, os défices orçamentais estavam, como agora, na ordem do dia. Em Portugal, discutiam-se sobretudo as implicações da convergência nominal, a que nos obrigava a decisão de aderir à moeda única.
Talvez por isso e porque o debate económico era então mais restrito do que hoje, não se deu muita atenção ao que por essa altura se passava noutros países que então se debatiam com graves problemas orçamentais.
Porque a ignorância da história não aproveita a ninguém, vale a pena recordar as medidas então tomadas em duas pequenas economias abertas que atravessavam um período de ajustamento radical a crises muito graves: a Suécia que, na sequência de um programa de liberalização financeira e descida dos impostos e das taxas de juro, tinha passado por um período de sobreaquecimento da procura interna e de perda de competitividade, a que se seguiu uma forte e prolongada recessão e a explosão do défice orçamental (11,6% do PIB em 1993); e a Argentina que, com o novo regime do Presidente Menem e do Ministro Cavallo, procurava libertar-se de uma pesada herança de hiperinflação e recessão.
Um texto de Sebastian Edwards de 1995 descreve o programa de estabilização argentino, cujo objectivo era a redução drástica do défice orçamental e a reconquista da confiança dos mercados financeiros internacionais.
Dele constavam medidas de natureza fiscal, sobretudo viradas para a simplificação do sistema e para a sua maior eficácia. Apesar delas, as receitas fiscais em 1994/95 situavam-se em redor dos 12% do PIB, contra 20% em 1990.
A grande contribuição para a redução do défice orçamental resultou, assim, das despesas: o investimento público sofreu um corte drástico (“em 1991 as despesas de capital eram inferiores em mais de 25% aos níveis já deprimidos de 1987”); o número de funcionários da administração central foi reduzido em 100 mil entre 1991 e 1992; 200 mil professores foram transferidos para os orçamentos provinciais; os preços dos serviços públicos foram drasticamente aumentados, por forma a cobrirem os custos; e, a partir de 1990, o governo lançou-se num programa agressivo de privatizações, destinado não só a obter receitas, mas a eliminar os subsídios necessários para cobrir os crónicos défices das empresas públicas.
Em consequência destas medidas, em 1993 o défice público consolidado não ultrapassava os 0,2% do PIB e o rácio da dívida pública era inferior a 30%. Apesar dos efeitos da crise do México em 1994/5, o défice nunca ultrapassou os 3,5% do PIB. Em 1998 era de 2,1% e a dívida pública situava-se em 41%.
“What went wrong?” é o título do capítulo do livro de Michael Mussa (o economista-chefe do FMI aquando do colapso argentino do final de 2001) apropriadamente intitulado “Argentina and the Fund: From Triumph to Tragedy”.
Por estranho que pareça, na interpretação largamente partilhada de Mussa, o que correu mal foi a política orçamental argentina. O Fundo estava muito mais preocupado com a taxa de câmbio do que com o orçamento.
Revelou-se, por isso, altamente permissivo ao não obrigar a aprofundar o ajustamento orçamental no período de crescimento rápido que se seguiu à crise de 1994/5, contentando-se em manter as aparências de controlo, graças à contabilização de receitas irrepetíveis de diversas naturezas.
A parte mais recente da história argentina está ainda na memória de todos. Passemos, por isso, à Suécia. Também aí se debateu a necessidade de um ajustamento drástico para restaurar a credibilidade junto dos mercados financeiros.
No entanto, prevaleceu uma mudança de fundo no processo orçamental, considerado extremamente frágil. As medidas mais importantes respeitaram a:
(1) reduzir a parcela das despesas sujeita a ajustamentos automáticos;
(2) iniciar a elaboração do OE com a fixação de um limite global às despesas;
(3) estabelecer programas plurianuais de dispêndios, não susceptíveis de ajustamentos discricionários;
(4) restringir a capacidade do Parlamento emaumentar despesas e impor a aprovação do orçamento como um todo.
A par destas medidas, que transformaram a Suécia num dos países desenvolvidos com um processo orçamental dos mais modernos e eficazes, foram adoptadas providências imediatas quer em matéria fiscal (como a subida dos impostos sobre os combustíveis), quer de corte de despesas menos essenciais.
Porém, como o então ministro das Finanças e actual primeiro-Ministro sueco afirmava em 1995, no mesmo simpósio em que Edwards apresentou o seu trabalho sobre os países latino-americanos, “um processo de consolidação orçamental tem duas fases: fazê-la e mantê-la”.
Para os mercados financeiros, pela sua própria natureza, o que conta é a primeira fase. Para os países, contudo, é bem mais importante que, como na Suécia, o orçamento permaneça equilibrado e a economia e o emprego cresçam.
Para isso é necessário, mais uma vez nas palavras de Göran Persson, que os custos da consolidação sejam partilhados de forma justa, que o programa seja pensado e apresentado de modo coerente, tornando claro a cada grupo de interesses que ele não será o único a suportar os sacrifícios.
Esta é a razão porque as medidas dramáticas e o zurzir nos funcionários públicos ou neste ou naquele político nos deviam impressionar muitomenos que a adopção ponderada de um verdadeiro programa de consolidação orçamental.
Na Suécia, a aprovação parlamentar desse programa foi de 94%. Os resultados estão à vista e o modelo europeu não tem que envergonhar-se.