Trinta anos depois do 25 de Abril e depois de muitas conquistas, falta ainda encontrar o equilíbrio saudável que conjugue a liberdade e a autoridade democráticas, fundamentos de uma sociedade desenvolvida. Passamos de um regime que exerceu a autoridade de forma ora déspota, ora arbitrária, para um quadro que se caracteriza por um desregrado clima de impunidade, tendo por fundo resquícios da inquisição e do corporativismo, visíveis no boato insidioso e delator e na confusão entre legítima solidariedade e intolerável cumplicidade. Esta fragilidade abala a sã convivência democrática, afecta os direitos dos cidadãos, prejudica a solidariedade social, fomenta o laxismo. Acima de tudo, beneficia quase sempre o infractor.
Combate-se este estado de coisas, sem rigor, com mais legislação sempre que há uma crise. Temos assim uma produção diluviana de leis, mas uma ineficaz e tardia regulamentação e um fraquíssimo sistema de fiscalização.
Na economia, o funcionamento do mercado é mentira, a legislação sobre a concorrência existe mas não se aplica. O pão aumentou 35% sem que vislumbremos motivos, os combustíveis encarecem com a liberalização. A cartelização é inevitável, porque fica sempre, como outros vícios, impune.
Nas finanças, isentaram-se os taxistas do Pagamento Especial por Conta. Os outros, mais fracos porque menos perigosos, continuarão a pagar para a crise. É que os sapateiros não podem bloquear os passeios ou emparedar o Ministério das Finanças. Das duas uma, ou a medida faz sentido, e então deve ser aplicada a todos, ou não faz, e nesse caso, só se pode compreender a sua revogação. O que não pode é ser aplicada à medida, ou ficar refém da síndrome da ponte 25 de Abril. Discutem-se novas regras para a comunicação social, como ontem se discutiu a lei da televisão a propósito de outros excessos. Oscila-se entre a tentação de nova legislação e pedidos inúteis de auto-regulação, em vez de reforçar os poderes e os meios da Alta Autoridade que existe, e de fazer aplicar, sem perdões, a lei vigente.
O problema é que, muitas vezes, preferimos a impunidade à autoridade democrática, porque confundimos esta com o autoritarismo, não compreendendo que desta forma, e sem regras, estamos a permitir uma nova forma de ditadura, a do mais forte contra o mais fraco, a lei da selva. Uma sociedade onde a cigarra vive à custa da formiga, onde o predador actua em pleno dia, pode ser darwinista, mas não é certamente, justa. Porque a utopia que todos queremos, ao fim e ao cabo, construir, é uma sociedade mais coesa onde os mais fracos encontrem oportunidades, segurança, protecção. É para isso que deve servir o Estado.
fonte:
www.dn.pt