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Caldeirão da Bolsa

Será que...

Espaço dedicado a todo o tipo de troca de impressões sobre os mercados financeiros e ao que possa condicionar o desempenho dos mesmos.

Será que...

por Serrano » 1/6/2003 19:52

o Miguel Sousa Tavares também é partidário?
Será que o homem dos bigodes vai, mais uma vez, ficar com a lingua no saco, apesar do seu enorme interesse no assunto?

O Essencial
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 30 de Maio de 2003

Serenamente, e de acordo com o pedido feito pelo Presidente Jorge Sampaio, vou escrever aqui pela primeira vez acerca do processo Casa Pia, tentando distinguir o que é essencial do que é acessório, o que é legítimo exigir do que é insustentável tolerar.

Antes de mais, é essencial e pacífico concluir que, durante anos, décadas talvez, dezenas de crianças confiadas à guarda e tutela do Estado foram postas ao serviço das taras sexuais de adultos em plena consciência dos seus actos. À matriz principal do crime de pedofilia, que é a exploração da inocência infantil e das relações de proximidade em que uma criança naturalmente confia, juntou-se, neste caso, a cobardia adicional dessa exploração recair sobre crianças órfãs ou abandonadas de pai e mãe que os defendessem e essa outra e sinistra superioridade social e económica do agressor sobre as suas vítimas. Tudo isto foi feito, organizadamente, por uma teia de gente, do motorista aos altos responsáveis da Casa Pia, passando pela negligência cúmplice de quem, tendo tido conhecimento das denúncias ou suspeitas, entendeu nada fazer. Governantes, juízes, magistrados do Ministério Público, que preferiram arquivar os inquéritos e os autos, em lugar de se incomodarem com o assunto. Muito poucos dos que tiveram essa responsabilidade estão actualmente indiciados ou presos por isso. Manifestamente, faltam lá muitos outros e nenhuma justiça será completa se apenas se concentrar nos pedófilos e não levar a julgamento todos os que tornaram possível essa continuada ignomínia. A mim parece-me que o "Bibi" é pouco.

É ainda necessário que os que sofreram no corpo e na alma danos irreversíveis sejam compensados e ressarcidos - em primeiro lugar pelos abusadores, depois, e subsidiariamente, pelo Estado.

A seguir - e aqui entramos na zona de alerta - é necessário ter a consciência que, se todas as crianças abusadas foram vítimas, nem todas foram ou permanecem hoje "vítimas inocentes". Muitas, infelizmente e como já se percebeu, seguiram o caminho em que tão violentamente os iniciaram. São hoje prostitutos ou "dealers" de droga. Não quer isto dizer que tenham deixado de ser vítimas ou que merecem ser menos compensados do que os outros. Mas quer dizer que é precisa muita atenção quando dos seus testemunhos pode depender a liberdade ou a honra de um acusado. Porque quem, independentemente do seu passado desculpabilizador, já na idade adulta vende droga ou vende o seu corpo, não dá garantias de não vender também o seu testemunho. A favor de culpados e contra inocentes, se necessário e suficientemente aliciante.

Isto remete-nos para o início das investigações jornalísticas neste caso, quando, em todas as redacções, havia sempre alguém que garantia que conhecia um antigo aluno da Casa Pia que testemunhava contra Fulano ou Sicrano, e seguia-se - murmurado como se fosse segredo terrível, mas repetido mil vezes ao dia - um rol de nomes inverosímil e, aparentemente, insaciável. Temo, e sempre temi, que os verdadeiros culpados se venham a esconder atrás da profusão de nomes de inocentes fabricados por testemunhos falsos ou levianamente interpretados como verdadeiros, de modo a descredibilizar a investigação e a salvar nas mesmas águas os que não têm perdão e os que não têm defesa, apesar de inocentes.

Eu não conheço pessoalmente Paulo Pedroso. Não sei, como em relação a todos os outros, se é culpado ou inocente. Mas tenho lido todos os indícios que contra ele pendem - ou a parte deles que a acusação pública entendeu promover como fuga de informação para justificar a sua prisão preventiva - e o que li deixou-me perplexo. Concluir, por exemplo, que o facto de o PS ter tentado evitar o aparato e o escândalo público da sua notificação judicial era um indício que justificava a prisão preventiva, sob o fundamento de ele poder prejudicar as investigações, é para mim um sinal claro não apenas de uma conclusão abusiva, mas, ainda e pior, de que com a própria prisão se tentou encontrar motivos posteriores que a justificassem - como tantas vezes sucede nos tribunais de instrução criminal.

Ora, agora é de bom tom e popular doutrina dizer-se que só quando a justiça atinge os "poderosos" e os políticos é que se começam a levantar dúvidas sobre os seus métodos. Oiço o corpo judicial, exuberante de protagonismo, a insinuar sem descanso que os políticos se julgam acima da lei e reclamam estatuto de privilégio. Oiço a actual maioria, incapaz de disfarçar o seu (provisório?) contentamento, a repetir que o actual sistema de justiça foi montado pelo PS, pelo que não têm de que se queixar, se porventura até as conversas privadas do secretário-geral do PS com o Presidente da República são escutadas por alguns anónimos agentes da PJ e arroladas como "provas" no processo. Estão a brincar com o fogo e seria bom que atentassem em algumas coisas, antes que seja tarde. Mil vezes uma democracia com limitações aos métodos de investigação judicial do que uma democracia com limitações à liberdade de actuação política. Já conhecemos uma ditadura com juízes, o que nunca conhecemos foi uma ditadura com partidos livres. E nunca é demais repetir o essencial nesta matéria: antes um culpado em liberdade do que um inocente na prisão, antes um culpado em liberdade, porque não se conseguiu provar a sua culpabilidade, do que um culpado preso, porque se apurou a sua culpa através da violação de todos os direitos de defesa e garantias dos cidadãos. Guantanamo, não.

Pessoalmente, estou à vontade na matéria: nunca fui político, nem tive partido e, como se recordarão os meus leitores do PÚBLICO, não é de hoje, mas de há muito, que denuncio os métodos de actuação judicial e as sucessivas derrogações legislativas que a lei processual penal vem fazendo em matéria de direitos dos arguidos. Sempre denunciei, por exemplo, essa coisa hipócrita que é um segredo de justiça - que eu defendo como essencial à investigação e até um ponto razoável -, mas que, desde Cunha Rodrigues, vem sendo usado, por aqueles a quem compete a sua guarda, como instrumento de utilização política, mediática ou até de promoção pessoal. A administração sibilina das fugas ao segredo de justiça por parte da acusação pública é um escândalo continuado e intolerável. É uma forma cobarde de exercício de um poder que não consente defesa, que não tem escrutínio e que é intoleravelmente irresponsável. Lamento que o procurador-geral da República, em lugar de estar envergonhado com a situação, ainda contribua para a alimentar, quando, em tom leviano, responde de passagem a um jornalista que "pode ser" que o Herman José também seja arguido. É este "pode ser", este pode ser tudo, de quem sabe que tem nas mãos o poder devastador de destruir para sempre vidas e carreiras que eu não aceito. Com o Herman José ou qualquer outro. Agora, ou como sempre o escrevi.

Assim como não aceito o enxovalho premeditado dos suspeitos, a humilhação planeada. Não aceito que Pimenta Machado tenha de ser preso a um domingo para ser ouvido segunda-feira à tarde; que Carlos Cruz tenha de ser preso no Algarve, à chegada a casa dos sogros, perante a família inteira; que Fátima Felgueiras tenha de ser detida para inquirição no edifício da câmara e não em sua própria casa; que Paulo Pedroso tenha de ser notificado em plena Assembleia da República, por um juiz que se desloca com todo o aparato possível, incluindo uma câmara de televisão atrás; que Herman José tenha de ser notificado para daí a cinco dias, no próprio estúdio onde trabalha, perante colaboradores, amigos e convidados.

E, definitivamente, não aceito que aos métodos da tortura e das escutas telefónicas indiscriminadas que caracterizavam a investigação policial da PIDE se tenha retirado a tortura e se mantenha o resto. Nenhuma omissão ou ambiguidade legislativa consente que os magistrados se sintam autorizados a escutar conversas pessoais de quem não é suspeito de crime algum, sob o pretexto de que, todavia, conhecem alguém que é suspeito e através dessas escutas podem chegar à colheita de provas. Que se incomodem a obtê-las de outra forma - com investigação a sério, com trabalho fora do gabinete, com dedução e capacidade investigatória. As escutas telefónicas, para quem se lembra das que a PIDE fazia, são, tal como a pedofilia, uma forma de violação daquilo que é mais íntimo numa pessoa. A sua prática deve ser restringida a casos absolutamente extremos e não como forma de obtenção de provas, mas sim da sua confirmação - o que faz toda a diferença. Torná-las em coisa habitual e em método de investigação rotineiro é, tal como a pedofilia, um crime.

E assim regresso ao início: nada do que se passou na Casa Pia deve ficar impune. Não pode ficar uma dúvida de que nenhum culpado escapou e de que se fez justiça. Mas, para isso, é necessário que os métodos de investigação não subvertam toda a credibilidade da própria investigação. Ora, independentemente de se saber se com a prisão de Paulo Pedroso se prendeu um culpado ou um inocente, as circunstâncias que rodearam essa prisão devem fazer soar uma campainha de alarme para todos os que acreditam que não há investigação nem justiça que se possam exercer sobre os escombros do Estado de direito.
 
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