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Caldeirão da Bolsa

Mais Dinheiro para a Educação?

Espaço dedicado a todo o tipo de troca de impressões sobre os mercados financeiros e ao que possa condicionar o desempenho dos mesmos.

Mais Dinheiro para a Educação?

por lan » 11/9/2004 2:27

Por M. FÁTIMA BONIFÁCIO

O engº. Sócrates renovou recentemente, à laia de manifesto da sua
candidatura, a promessa de que com ele o país investirá a fundo na
Educação (a isto se resumia o essencial da mensagem). Uma promessa que
em Portugal tem sido feita, com intermitências, de há perto de duzentos
anos a esta parte e que Guterres tentou erigir em desígnio digno de
concitar uma "paixão" nacional. Injectou-se mais dinheiro no "sistema",
promoveu-se a modernização pedagógica, reformularam-se os programas e
refizeram-se os manuais. Reformas e dinheiro de nada serviram.
De há anos a esta parte, com assinalável regularidade, o país toma
conhecimento de números que revelam o clamoroso fracasso da Escola.
Ainda agora fomos escandalizados pela notícia de que metade dos alunos
do secundário chumba nos exames nacionais do 12º ano. Desgraçadamente,
este resultado encobre a péssima qualidade dos alunos que conseguem
passar, chegam à Universidade quase analfabetos e saem de lá pouco
melhor do que entraram. Há 25 anos que sou professora de História na
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Há 25 anos que observo, de ano para ano, a degradação da qualidade dos
estudantes, e há 25 anos que vão sendo piores as notas que me vejo
obrigada a dar, apesar de a minha complacência e tolerância terem
aumentado com a idade e a sensata tendência para a acomodação que ela
gera.
Convenci-me ultimamente de que o panorama não melhoraria
significativamente nem que os programas e os professores fossem todos
excelentes. Não há assunto nem eloquência capazes de obrar o milagre de
despertar a atenção e a curiosidade de uma massa estudantil inteiramente
desinteressada em aprender e unicamente apostada em "passar". A grande
maioria dos alunos limita-se a tirar apontamentos nas aulas de forma
totalmente acéfala, e os disparates que escrevem nos testes revelam uma
total incompreensão das matérias mais simples e uma total incapacidade
de exporem com sequência e clareza as ideias mais elementares ou de
narrarem com nexo os factos mais básicos. Não percebem o que ouvem e
menos ainda o que lêem. De resto, salvo uma ou outra excepção honrosa,
lêem pouco ou mesmo nada. Como suponho que fazem também os meus colegas,
trato de me ajustar à circunstância. Isto significa baixar o nível das
aulas até ao ponto em que poderíamos estar numa qualquer turma do
secundário.
Não sei que "competências" estes alunos adquiriram no liceu, mas sei que
não adquiriram o mínimo de conhecimentos que lhes permitiriam ascender a
um patamar de aprendizagem superior. Ensinar História na Universidade
tornou-se quase impossível, porque em vez disso é necessário
familiarizar os alunos com as matérias, os factos, os nomes, as datas e
as noções ou conceitos a partir dos quais poderiam então começar a
aprender História e a discernir entre as várias maneiras de a escrever.
Acresce que não sabem português: o vocabulário de que dispõem é de uma
pobreza confrangedora, e os erros de ortografia e gramática são de molde
a arrepiar. Sendo a história uma disciplina literária, não admira que o
desastre seja quase geral, como aconteceria ao engenheiro que
pretendesse construir uma ponte ou um prédio sem saber física ou
matemática.
Confrontados com a sua ignorância, poderíamos supor que os alunos,
chegados à Universidade, se esforçassem por supri-la através da
aplicação redobrada ao trabalho. Não espanta que tal não aconteça: não
têm curiosidade intelectual e por isso não têm interesse em aprender; e
o liceu não lhes inculcou hábitos de disciplina nem de esforço.
O estudante universitário - como o do liceu - tem antes de mais direito
ao seu lazer. Estudará, ou não, no tempo que sobrar. Pela Universidade
arrasta-se hoje uma preguiça generalizada que torna a docência um
exercício frustrante e deprimente. Invejo colegas que têm prazer em
declamar perante auditórios que não estão interessados no que dizem nem
captam metade do que ouvem; que raramente levantam uma dúvida
pertinente; que quase nunca suscitam um problema interessante. A
docilidade dos estudantes de hoje só espanta quem não saiba que ela é a
máscara de uma apatia e ignorância que não lhes permitem interrogar e
muito menos debater. Em tempos tive alunos que são hoje meus colegas e
académicos brilhantes. Essa raça desapareceu.
Não se pense que exagero. Os estudantes chegam hoje em dia à
Universidade sem quaisquer hábitos de disciplina e de trabalho. A
simples ideia de que aprender custa esforço e sacrifício, de que fazer
um curso superior é algo que absorve e ocupa a tempo inteiro, é
impensável. Neste aspecto, como noutros, a Universidade é um mero
prolongamento do Secundário: o prolongamento de um imenso recreio que,
por seu turno, já prolongava o jardim infantil em que se converteu o
Ensino Básico. Desde a mais tenra idade, as crianças são educadas e
formadas na noção errónea, e nefasta, de que aprender pode e deve ser
tão lúdico como jogar à bola na praia ou saltar à corda nos intervalos.
Chegadas ao Liceu, deparam com a mesma filosofia pedagógica. As matérias
têm que ser interessantes, apelativas, divertidas, ensinadas de maneira
que se não dê por ela e aprendidas de maneira que não dê trabalho. As
aulas têm que ser animadas, participadas, de modo que a atenção se
prenda sem esforço. As avaliações não podem ser traumatizantes: são
sempre imperfeitas e, portanto, muito, muito relativas, tão relativas
que até mesmo um péssimo aluno pode sempre ser desculpado. Em suma: as
crianças, os adolescentes e os jovens adultos não podem ser maçados e
qualquer embate com as duras realidades da vida lhes deve ser poupado.
De facto, tudo começa com a cultura de adulação da criança que domina a
sociedade ocidental contemporânea e que não passa, como tantas outras
características dela, da degradante e ridícula pieguice em que culminou
a "Sensibilidade" descoberta na segunda metade do século XVIII. Tudo o
que diz respeito às crianças - o seu bem-estar, a sua saúde, a sua
protecção, o seu lazer - suscita imediatamente a atenção desvelada de um
público adulto que erigiu as crianças no centro do mundo e entende, pelo
menos "teoricamente", que tudo se deve subordinar aos seus interesses e
às suas presumidas necessidades. (Felizmente já temos um ministério da
Criança.)
Nas famílias, as crianças tornaram-se geralmente pequenos déspotas
inteiramente desprovidos de quaisquer hábitos de obediência ou elementar
respeito pelos pais e os mais velhos, que no entanto tudo fazem e
sacrificam para que os rebentos possam gozar de condições ideais para
desenvolverem livremente as suas promissoras personalidades. De tão
mimadas, as crianças crescem, desde o berço, com a justificada sensação
de que na vida só há brincadeira e direitos e de que tudo lhes é devido.
Se por acaso algumas revelam um temperamento mais difícil, não se
aplicam os bárbaros remédios clássicos. Arranja-se-lhes acompanhamento
psicológico a fim de tentar, sem traumas nem violências, torná-las mais
cordatas sem contudo prejudicar nem levemente o seu "crescimento
natural". A "personalidade" da criança é sagrada e todo o respeito por
ela é pouco.
Depois do jardim-escola, onde as educadoras de infância as ajudam a
brincar, chegam ao primeiro ciclo do Básico, onde os professores se
esforçam por que as aulas se pareçam o mais possível com recreios.
Segue-se o antigo liceu. Pela primeira vez vislumbram - mas não mais do
que vislumbram - a necessidade de refrearem os seus ímpetos e de se
conformarem com um mínimo de disciplina e aplicação. Os trabalhos de
casa são vistos, pelos alunos e por muitos pais, como um fardo cruel
para crianças ou adolescentes que já passaram várias horas na escola
sujeitos a constrangimentos "stressantes". É tarde para se habituarem.
Trabalhar é a última das prioridades para adolescentes confrontados com
mil e uma solicitações divertidas que os distraem das suas obrigações, a
que não dão importância.
Portugal é o país europeu com mais alunos com dificuldade em aguentar o
alegado "stress" escolar. O esforço de estudar é demasiado duro; a
concentração que se exige é esgotante... Quando chegam ao 12º ano,
metade dos alunos chumba. A metade que consegue passar, chega à
Universidade e não é capaz de ler um livro do princípio ao fim. Grande
parte desiste dos cursos depois de se ter arrastado anos pelo bar, pelos
corredores e pelas salas. Quase todos os que chegam ao fim saem da
Universidade tão ignorantes como lá entraram. Continuam a não escrever
português e sem conseguir interpretar um texto. Mas são os senhores
doutores de que sairão os quadros do país e os futuros professores do
liceu. Não há dinheiro que resolva o problema.
 
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