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Caldeirão da Bolsa

As pedras de Alá

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As pedras de Alá

por Sol Dado » 4/1/2003 15:10

Por ironia das coisas, num artigo contemporâneo da fundação do Estado de Israel, no Avante! (nº 133, 1ª quinzena de Março de 1949), intitulado "A roda da história não faz marcha atrás — A situação evolui a nosso favor", o PCP, muito provavelmente sob a pena de Cunhal, escrevia: "Na Palestina, o novo Estado de Israel faz fracassar a agressão militar dos senhores feudais da Liga Árabe, equipados e comandados pela Inglaterra, e dá assim novo impulso ao movimento libertador dos próprios países árabes".

O artigo traduzia a então posição soviética, que levou a URSS a ser o primeiro país a reconhecer Israel, e que, em plena Guerra Fria, via em Israel um farol do progressismo socialista num mar "feudal" aliado do imperialismo britânico, então descrito como o imperialismo mais reaccionário e agressivo. Este ponto de vista era unanimemente partilhado pela esquerda europeia e americana, que elogiava a utopia dos kibutz e sentia uma grande afinidade pela maioria dos líderes judeus. Estes líderes, oriundos na sua maioria do Leste da Europa, eram, com raras excepções, homens e mulheres que associavam o seu sionismo à cultura histórica do movimento operário socialista e comunista europeus, onde as organizações judaicas alinhavam na ala mais radical.

Tudo isto se alterou, não porque a política ou os políticos israelitas tivessem mudado, mas sim porque a política soviética durante a Guerra Fria se tornou virulentamente anti-americana e, com o advento do chamado "terceiro mundo" nos anos 50, se aliou aos nacionalismos árabes. Os dirigentes árabes passaram de "feudais" a progressistas e os israelitas de "libertadores" a instrumentos do imperialismo americano. Esta viragem dividiu igualmente a esquerda europeia, parte da qual, os socialistas herdeiros da II internacional, alinhou profundamente com os americanos no combate ao comunismo e permaneceu aliada de Israel.

Políticos e sindicalistas socialistas continuavam a rumar a Israel para pisar terra próxima, mas os partidos comunistas, os movimentos de libertação e a extrema-esquerda tornaram-se virulentamente anti-israelitas. Os novos heróis eram Nasser, Saddam Hussein, Hafez al-Assad, chegados ao poder através do partido socialista laico, o Baas, Arafat, Khadafi, revolucionários iemenitas e depois, com o crescendo radical dos anos 60 e 70, os terroristas da miríade de grupos que sob a égide dos serviços secretos russos, alemães orientais, sírios e iraquianos, matavam em nome do "povo palestiniano". Este era o mundo antes do processo de paz, antes da revolução iraniana, antes do Hanas, antes do Hez-bollah, antes da guerra do Golfo, antes da chegada ao poder de líderes árabes moderados, antes do fundamentalismo islâmico.

Olhando por detrás desta poeira da história e destas inflexões, há no entanto uma diferença de sempre entre os dois mundos, que as viragens geostratégicas pretendem ocultar:
Israel, mal ou bem, permanece uma democracia, e a maior parte dos seus inimigos árabes varia entre autocracias e ditaduras; Israel é um Estado laico, por muitas tensões que as importantes comunidades ortodoxas tragam para a sua vida, enquanto o Islão permanece alheio à própria ideia de laicidade na sociedade e no Estado; Israel não fomenta no seu sistema de ensino, nos média, na sua vida cívica, uma cultura de vilência, enquanto os seus opositores árabes o fazem; Israel tem um sistema político legitimado pelo voto, sejam quais forem as fragilidades governativas, onde a opinião pública suporta as concessões necessárias para garantir a paz e a OLP não tem, por isso precisa de recorrer à violência.

Ora, os regimes baseados no poder e na força não podem ser julgados do mesmo modo que as democracias. É por isso que eu não vejo nas imagens de televisão só as crianças a apedrejar os militares israelitas, mas também vejo os militantes do Hamas, os polícias palestinianos, ou as milícias de todo o tipo vestidas de camuflado e com a cara coberta, a gritar "Allah u akbar" e ... a disparar para o ar balas e não pedras. [...] O que eu vejo é as autoridades palestinianas a empurrar e a permitir que na primeira linha de fogo estejam crianças a atirar pedras, não porque "Alá não tenha metrelhadoras", mas porque a guerra que essas crianças — um exército infantil igual aos muitos que matam indiscriminadamente em África — estão a travar é para as televisões.

E nas televisões, uma pedra lançada por uma criança é uma arma mais mortífera do que uma bala de metralhadora. É por isso que os polícias palestinianos e os militantes do Hamas e as milícias da OLP, que estão atrás, não se chegam à frente, como era normal que fizessem se se tratasse de uma guerra entre as "metralhadoras de Jeová" e as "pedras de Alá".

José Pacheco Pereira em Vai Pensamento
 
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